Velhos Mestres, relíquias de antiquário
- vicentecevolo
- 11 de mar. de 2021
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Da uberdade do gênio manniano brota o personagem Hans Castorp, protagonista do romance Der Zauberberg (A Montanha Mágica). Recém-formado em engenharia naval, o jovem Castorp é um típico representante das classes altas de Hamburg no Segundo Reich. Embora desprovido de predicados intelectuais, científicos, artísticos e morais que fizessem dele uma figura extraordinária[1], vemo-lo flertar, em francês, com sua paixão russa, a fugidia Madame Clawdia Chauchat, e compreender, com consciência sintática, frases latinas pronunciadas pelo humanista Lodovico Settembrinie.
Outros eram os tempos na velha Hamburg. Em meio às trepidações que anunciavam a nova temporada de avacalhação do legado greco-cristão, sobretudo depois das duas grandes guerras mundiais, a educação clássica ainda sobrevivia, decorosa, no cenário germânico de modo geral. Decerto que os alemães, em particular, já não podiam se vangloriar de uma cultura pedagógica infanto-juvenil, inspirada nas artes liberais (Trivium e Quadrivium, nos dizeres de Boécio), fortuna da ensinança escolástica, trancafiada para sempre no passado. Na época do extinto Império Alemão, a sete palmos já se encontravam as gerações de moços que viveram nos séculos XII e XIII (et sequentia). Geração que havia assimilado - por via da lectio, isto é, da atenção silenciosa devotada à exposição do docente, possuidor da palavra, e da disputatio, ou seja, do enfrentamento consciente dos argumentos contrários e favoráveis, em diálogo com o professor - que para verdadeiramente conhecer é preciso nutrir o espírito com o que de melhor a cultura produziu, inundá-lo com “a herança dos séculos”.[2]
Entretanto, apesar do manifesto depauperamento do ensino, resultante do descolamento da cultura da tradição supratemporal (que lhe servira de alicerce), a escola alemã ainda fornecia, na época de Castorp, as bases para que os aulistas adotassem como professores, se o quisessem, os maiores pensadores da humanidade.
Assim sendo, de posse do dialeto ático, e quem sabe do grego koiné, poderiam tornar-se alunos de Aristóteles, que lhes ensinaria os fundamentos últimos de todos os saberes, e leitores invulgares do Novo Testamento, que lhes esclareceria a força do amor e do perdão, imprescindíveis balaústres da solidez moral frente à miséria dos homens.
Com lições presbíteras de latim e um pouco de retórica, teriam livre acesso a figuras do quilate de um Cícero ou de um Sêneca, para com eles aprender algo acerca das facetas racionais e irracionais do poder, tão importantes, como ressalta Bertrand de Jouvenel[3], para o entendimento lúcido do presente político.
Por fim, com algum estudo formal de literatura, filosofia e filologia, poderiam ainda se embeber, como o jovem Werner, o futuro Heisenberg, Nobel de física teórica, do ocasionalismo de Nicolas Malebranche.
Aos olhos de quem observa a partir dessa catástrofe nauseabunda chamada ensino brasileiro, a figura de Hans Castorp, particella comune do ambiente de Hamburg, é por contraste chocante. Estarrecedora. Não porque Castorp fosse erudito, como ressaltei anteriormente. Longe disso, em comparação, por exemplo, com os dois resolutos intelectuais que se digladiam na obra manninana, a saber, o enciclopedista Lodovico Settembrini e seu revial, Leo Naphta, o comunista com cheiro de incenso, Castorp revela-se homem de formação modesta, até mesmo medíocre, a depender do assunto em questão. Mas em comparação com qualquer egresso do ginásio tupiniquim, ou, então, com “o melhor” deles, nota máxima nessas disputas concursescas da vida, o jovem engenheiro de Mann desponta no cenário como autêntico princeps scholasticorum.
Por quê? Porque Castorp, assim como toda a sua progênie, desfrutava do privilégio de aprender com uma peça de inestimável valor, insubstituível, praticamente extinta no ensino hodierno: o MESTRE. Sim, é verdade que Cartop dispunha de uma educação formal rigorosamente séria, que se encontra, evidentemente, a distâncias astrofísicas daquilo que pode oferecer o sucateado educandário atual, cinicamente disfarçados de liceu pela manipulação publicitária. Mas mais do que isso, Hans é expressão literária de uma geração cuja formação foi conduzida por MESTRES. Refiro-me a professores que se dedicavam à formação intelectual e moral de pessoas, e não a especialistas em converção de cabeças em poderosas máquinas de resolver examezinhos tolos em tempo recorde ou instrutores técnicos, habilitados a transformar seres de carne e osso em “rodas dentadas ligadas a eixos”.
Salvo raríssimas exceções, o professor contemporâneo em nada se assemelha aos mestres de Castorp, a começar pela carência do elemento indispensável para sê-lo: o amor à ilustração. Não nos esqueçamos que os maiores mestres do ontem também foram notáveis eruditos, sobretudo porque se dedicaram à grande letradura universal com o mesmo empenho com que um jardineiro cultiva as mais belas flores do seu jardim. Eram amantes das Geórgicas de Virgílio; diletavam com etusiasmo sobre o naturalismo de Humboldt; sabiam enriquecer as partituras do espírito com as melancólicas notas de Chopin.
O filólogo Wilamowitz-Möllendorff, famoso na Europa em virtude de sua polêmica com o Nietzsche de O Nascimento da Tragédia, e o influente gramático Napoleão Mendes de Almeida, entre nós, são exemplos de exímios mestres. Möllendorff, pelo exemplo de ensino antidogmático, herdeiro da cultura escolástica, que procurava aos alunos ensinar a importância do estudo minucioso das teses contrárias às nossas, uma vez que a boa crítica pressupõe a compreensão dos argumentos adversários melhor do que os próprios adversários; Napoleão, pela indefessa dedicação ao ensino da norma culta e ao ataque à sua crítica, que distancia os estudantes dos tesouros escondidos nas entranhas do universal para trancafiá-los na masmorra dos solecismos provindos da “falta de escola”. Em ambos, sente-se, ao final de cada trecho escrito, a ressonância de séculos de leitura, que o amor desinteressado ao saber os fez alcançar em apenas uma vida.
Em um passado não muito distante, quando os educadores eram MESTRES, amantes das sapiências, podíamos dizer que habitavam os planos do saber e da alta cultura, representando-os com majestosa dignidade. No entanto, nos dias atuais, não passam de seres que, ao lado dos demais funcionários das escolas de ensino básico e dos departamentos universitários, habitam o maquinal domínio dos trâmites administrativos, movidos pelo "paradigma das metas", tal qual um contratado do terceiro setor, obcecado por resultados quantitativos, e emburrecidos por modelos desconstrutivistas imbecis. Hoje em dia, os professores não são mais PROFESSORES, ou seja, criaturas consagradas ao conhecimento e ao seu ensino, como dantes, mas prisioneiros incultos que servem exclusivamente à burocracia[4].
Foto: Napoleão Mendes de Almeida, gramático e filólogo brasileiro.
[1]MANN, Thomas. Der Zauberberg. Roman. Grosse komentierte Frankfurter Ausgabe. Frankfurt am Main: Fischer, 2002, p.53. [2] SERTILLANGES, A.D. La vie intellectuelle. Son esprit, ses conditions, ses méthodes. Paris: Éditions de la Revue des Jeunes, 1921, p.17. [3]JOUVENEL, Bertrand de. Du pouvoir. Historie naturelle de sa croissance. Paris: Hachette, 1972, p.31. [4] Exemplos de burrocracia: preenchimento de diários virtuais (que ninguém lê), aplicação de conteúdos prontos (fast food para massa encefálica), reuniões de departamento (palco de mandonismo, distribuição de privilégios imerecidos e exibicionismo), relatórios para instituições de fomento (o “dar satisfação” à máfia que banca), publicações quantitativas (papel para engordar currículo), e assim por diante.
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