O silêncio do tempo
- Vicente Cevolo
- 26 de jan. de 2019
- 3 min de leitura

"Grey Partridge, Pear and Snare on a Stone Table" (Chardin)
Irrompeu outubro como costumam irromper os novos meses. A sua entrada é, em si, discreta e completamente silenciosa, sem sinais nem fogueiras; os meses insinuam-se sem fazer ruído, de um modo que facilmente escapa à atenção de quem não esteja muito alerta. Em realidade, o tempo não tem marcas; não há trovões nem trombetas ao início de um novo mês ou ano; e na própria estréia de um novo século somos unicamente nós, os homens, que soltamos foguetes e repicamos os sinos. [1]
Pelo menos a cada cem páginas lidas do volumoso clássico A Montanha Mágica, o leitor depara-se com alguma surpreendente digressão a respeito da natureza do tempo. Em muitas dessas digressões,em geral capturadas no cenário anímico do protagonista, o “preceptorando” Hans Castorp, apologiza-se a ideia de que o tempo externo (quantitativo), no romance em permanente desconcordância com as impressões internas do tempo (qualitativas), não tem razão essencial de ser. Quer dizer, por detrás do escoamento temporal, subjazendo suas expansões e contrações fugidias não há um princípio explicativo que seja capaz de satisfazer o apetite natural do intelecto por respostas,e nem uma bússola embutida com a função de orientar a cinesia temporal para algum lugar.
O tempo natural, corruptor silencioso da matéria viva,simplesmente não tem logicidade, a não ser a tendência de seguir o seu próprio curso primitivo,completamente indiferente à racionalidade administrativa que pretende ordená-lo, subdividindo-o em períodos sequenciais que só existem na imaginação dos historiadores ou dotando-lhe de símbolos carregados de virtudes humanas. Nessas reflexões sobre o âmago do tempo, Thomas Mann ensina-nos que o transcorrer registrado pelos relógios e mapeado nos calendários não é dotado de propósito.
Congruente ou não, o que me parece particularmente significativo no libretto da ópera manniana é que ele expressa, sem prurido cético-cartesiano, o que se apresenta imediatamente à faculdade perceptiva quando a deixamos receber o real (no caso, o impacto do tempo físico)como ele se manifesta em realidade (in Wirklichkeit), e não como mera projeção de expectativas lúdicas ou de diegeses míticas que pretendem figurá-lo. [2] E o que se apresenta ao perceber do homem e, consequentemente, ao seu juízo intelectual no átimo em que se debruça sobre o mundo sensível?A constatação de que história e tempo são termos antagônicos.
A palavra história amiúde designa uma unidade imperfeita. Tal unidade defectível nasce da articulação paulatina entre enredos de narrativas particulares, que através dessa unicidade são suturadas, como parte orgânica, a uma Narrativa Comum em formação. Esta Narrativa, além de conferir senso esistenziale às narrativas particulares que dialeticamente a constituem, tende a se manter como tendência que sobreviverá à desintegração de suas estruturas atuais. Assim é que se diz “história política de Roma”, ou, então, “história linguística do idioma latino”, mesmo em uma época em que a Roma antiga já não existe e onde o latim é língua morta.À contraluz, o substantivo tempo nomeia uma dinâmica que a forma nominal gerúndio talvez descrevesse com maior justeza, a saber, o incessante fluir anônimo, privado de unidade,que tudo arrasta para a transformação incerta. O que quero dizer é que, muito embora o costurar do tecido histórico sempre se dê com linhas e agulhas do tempo, o próprio tempo não possui história, uma vez que a ausência de intuito elementar e, portanto, de sentido no tempo natural é suficiente para impedir que o seu desdobramento desapaixonado constitua um enredo significativo. Afinal, “o tempo não tem marcas”.
Essa carência de elementos antropológicos, portanto, de historicidade na substância do tempo natural parece-me válida, sobretudo, para a concepção ἐνέργεια humana. Mutatis mutandis, a adequada compreensão do tempo histórico exige a transferência da ausência de direção e sentido do tempo para o interior da história.
Notas
Pintura: Jean-Baptiste Simeon Chardin, "Grey Partridge, Pear and Snare on a Stone Table" - Oil On Canvas - 1748 - (Stadelsches Kunstinstitut (Frankfurt, Germany).
[1] "Der Oktober brach an, wie neue Monate anzubrechen pflegen, – es ist an und für sich ein vollkommen bescheidenes und geräuschloses Anbrechen, ohne Zeichen und Feuermale, ein stilles Sicheinschl eichen also eigentlich, das der Aufmerksamkeit, wenn sie nicht strenge Ordnung hält, leicht entgeht. Die Zeit hat in Wirklichkeit keine Einschnitte, es gibt kein Gewitter oder Drommetengetön beim Beginn eines neuen Monats oder Jahres, und selbst bei dem eines neuen Säkulums sind es nur wir Menschen, die schießen und läuten.” (MANN, Thomas. Der Zauberberg. Stuttgart, Hamburg, München: Deutschen Bücherbund GmbH & Co, 1985, p.).
Para traduzir esta passagem, vali-me, como texto auxiliar, da primorosa tradução de Herbert Caro (Editora Nova Fronteira, 1980).
[2] FERRARIS, Maurizio. Esistere è resistere. In: De CARO, Mario; FERRARIS, Maurizio. Bentornata realtà. Il nuovo realismo in discussione. Torino: Giulio Einaudi Editore, 2012, p.143.
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