A ausência de critério
- Vicente Cevolo
- 3 de jan. de 2019
- 2 min de leitura

Relativity (M.C. Escher)
O aberrante mau funcionamento do senso das proporções entre os estudantes secundaristas brasileiros, que os impede de perceber a real dimensão e importância dos valores, relações e hierarquias no plano do conhecimento, não advém, como se poderia imaginar, de um avaliar realizado com base em um repertório de critérios distorcidos, herdados de uma cultura ruinosa. Após alguns anos de magistério em Minas Gerais, neste abobalhado espetáculo circense que é o Ensino Médio, percebi que tal desempenho precário não era resultado da adoção de critérios equivocados no tocante ao embasamento dos juízos de realidade. Com isso não quero negar a existência desses critérios. De fato, o emprego desenfreado de normas ordinárias para a ordenação do real, isto é, da natureza, das relações sociais e do próprio eu, por parte do corpo discente, existe e é regra. Todavia, a utilização de critérios ruins é apenas a manifestação epidérmica, exterior, de um movimento perpassado em um nível mais profundo da psicologia juvenil de nossa época. Se descermos até este plano mais essencial, perceberemos que o uso de critérios estruturantes ínferos, nesse caso, não é uma escolha, feita com consciência, ou tão só a atualização de uma herança decadente, mas reflexo da mais completa ausência de critérios entre os alunos. Afinal, tendo em vista a inaptidão para pinçar no tecido sociocultural elementos para construir “fôrmas próprias”, que atuem na organização mental do mundo, adota-se qualquer coisa que esteja a circular no lado de fora, a portata di mano.
A prova mais contundente que evidencia a bússola enlouquecida em que se transformou a consciência outrora ordenada dos nossos estudantes, por carência de critérios, é a incapacidade desses jovens de constatar a diferença existente entre pólos que se opõem gritantemente, como, por exemplo, entre bons e maus professores. Salvo meia dúzia de exceções, no passado, nas gerações alfabetizadas pelo método sintético (alfabético, fônico, silábico) - antes da introdução do construtivismo, em 1986, com seu ataque exaltado às competências cognitivas básicas, ao poliglotismo, à boa educação musical, à psicomotricidade, à civilização e assim por diante -, em geral os alunos sabiam reconhecer o “volume encefálico” adquirido por um verdadeiro mestre, resultado de um custoso (porém, gratificante!) “queimar de pestanas” sobre mesas de biblioteca, e diferenciá-lo dos professores com instrução de botequim, produto de anos de absorção osmótica de enormes doses de conhecimento miniatural. Hoje, para a ala majoritária dos adolescentes e, por mais espantoso que possa parecer, também para as coordenações pedagógicas e direções, responsáveis pela contratação docente na educação básica, pouco importa se quem leciona estudou Dante Alighieri no original ou se o leu, se é que o leu, em versão traduzida da Martin Claret, vendida em qualquer banca de rodoviária ao lado da quitanda. Não existem referências estáveis que guiem no sentido de distinguir o verdadeiro do falso, a inteligência da burrice, a honestidade da vigarice. Afinal, se tais referências existissem seguramente apenas aparência descolada, retórica de cursinho, boa didática e pseudo-simpatia não seriam suficientes, como se percebe no ensino brasileiro, para conferir alto conceito, ou seja, aparência de respeitável mestre, ao mais reles dos embusteiros.
* Maurits Cornelis Escher, Relativity, 1953, Lithograph, 294mm x 282mm
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