Breve comentário sobre a construção da espacialidade humana e o problema da autorreferencialidade na
- Vicente Cevolo
- 14 de jan. de 2019
- 5 min de leitura

Homem e Espaço é um libelo que claramente se enquadra naquilo que alguns autores costumam intitular, de modo entusiasmado, um “experimento de pensamento” (Gedankenexperiment) [1]. Digo isto, não só em função do tom propedêutico daquilo que se pretende uma inicial contribuição à criação de uma filosofia do espaço propriamente dita, marginalizada, segundo seu autor, em prol de analíticas que tiveram no conceito ou categoria tempo a verdadeira razão de ser de suas muitas inquietações [2]. Refiro-me, sobretudo, a instigante massa de hipóteses filosóficas e de empirias em cadeia, ligadas entre si como que por uma débil fábula, isto é, por uma trama teórica de fundo compreensivelmente frágil - porque ainda em edificação [3]. O que está de acordo, diga-se de passagem, com a dose homeopática de precariedade e de subtil risco necessária para nutrir e dar vida a um experimento de facto.
Neste minucioso trabalho experimental, Bollnow reserva um papel específico ao último dos capítulos, A Espacialidade da Vida Humana [4]. Mediante a elaboração de um pequeno esboço, Bollnow pretende sugerir como a tessitura diferenciada, mutável e não entificada da ‘espacialidade da vida humana’ é construída a cada vez a partir de sua consubstância com aquilo que o autor denomina‘espaço vivencial’. Noutras palavras, temos aqui um movimento “inverso” do que fora feito ao longo de todo o texto, que, por decisão metodológica, tratou de reconstruir primeiramente as facetas “objectivo-intencionais” do espaço vivencial e vivido.Antes de continuarmos é interessante que façamos algumas precisões conceptuais.Nesse sentido, o que é um espaço vivencial? O que é a espacialidade humana? Qual é a noção de espaço presente nas duas expressões?
Entende-se melhor a acepção de ‘espaço vivencial’em termos não gerais, à contra luz da definição canônica do espaço newtoniano. O uso bollnowiano do termo espaço vivencial não diz respeito a uma estrutura algébrica correlata a uma topologia vectorial.Sem dúvida, não se trata de um cômputo de operações diferencio-integrais correspondente a um deserto objetivo, no plano eucliadiano, formado por regiões homogêneas, uniformes e regularmente organizadas, subdivisível em outras tantas regiões igualmente homogêneas até o limite do infinitesimal. Nesse espaço simétrico e unívoco, pretende-se que os topoi sejam continentes áridos, caracterizados por um vácuo sem semântica [5], exatamente por gozarem de anterioridade ontológica em relação aos conteúdos que os preenchem e encontrarem-se isentos das ambiguidades e vaguezas que atravessam os mesmos.
Bollnow apresenta sua definição de espaço vivencial via de regra contrapondo-a ao espaço assim concebido. Para isto, relê, ao seu modo, o estatuto ocupado pelo espaço na analítica daseiniana, capturando o que nela há de fundamental para si, a saber, a percepção crítica da não-neutralidade e a não-homogeneidade do espaço. Lembremo-nos que, na analítica daseiniana, o espaço é um existencial, pertencente ao modo de ser do ser-aí (Dasein). Dasein é ser-no-mundo (In-der-Welt-sein), ou seja, ser dos entes a ser compreendido em consonância com o mundo. Ser-no-mundo e ser-aí são noções imbricadas e infissuráveis na fenomenologia de mostração do ser. Se ser-no-mundo é uma forma privilegiada do ser-aí, ou seja, manifestação enquanto fenómeno do ser-aí, pois ser nele (no mundo) é revelar-se - o Dasein só é si mesmo quando se manifesta lançado-no-mundo, como modo de ser-no-mundo. Isto o torna um ser-junto-a, um ser-com (Mitsein) os outros entes (instrumentos) dados no mundo, de forma a comungar com os entes o espaço circundante (Umwelt) [6]. Com efeito, o espaço apresenta-se, portanto, como um existencial pertencente ao modo de ser deste ente no-mundo e junto-com, cuja significação é conferida pela presença do ser-aí. Portanto, o espaço é uma ambiência visceral ao ser-aí, responsável pela sua orientação significativa; por diversos serem os modos de ser do ser-aí, o espaço, sobretudo como modo de ser do ser-aí, apresenta-se como uma existência dotada de dimensões diferenciadas, qualitativamente distintas.Dito de modo breve e assumindo algo da centralidade do homem no esquema intencional do autor (como plano de fundo), espaço vivencial é, com efeito, todo um poli-contexto formado por lugares e regiões sempre nascentes, portadoras de significações particulares (ditas autênticas), que alteram e são alteradas pelos modos de pensar, sentir, imaginar, agir e morrer daqueles seres agente-sencientes que nelas se encontram. [7]
Ainda segundo o autor, muito embora o espaço seja dotado de significações autênticas desde seu vínculo umbilical com a atividade humana, sendo mesmo uma forma desta atividade, como se percebe, “somente há espaço na medida em que o homem é um ser espacial (…) que cria espaço” [8]. O que isto significa? Quer dizer que a existência humana, apesar da singularidade semântica própria dos territórios do espaço vivencial, também goza de certa identidade espacial sui generis, não exatamente a mesma dos espaços vivenciais (apesar de sua imbricação formativa junto a eles). Por um lado, se o espaço vivencial não é uma mera projeção subjectiva da existência humana, por outro, a “existência humana não é uma extensão espacial”.
Para Bollnow, os dois lados desse “binômio” só levar-nos-ia a uma terrível incongruência entre partes se, e somente se, fossem “termos” em “co-relação”. Todavia, neste quadro não temos nenhum dos três elementos citados; não há binômio, muito menos termos e, principalmente, co-relação entre termos. A partir desta constatação é que começa a fazer sentido o enunciado heideggeriano, parafraseado pelo autor, que afirma ser a “existência não uma” mera “extensão espacial”, e poderíamos ainda acrescentar: nem o espaço é uma mera extensão da experiência humana. Contudo, a existência humana “só é o que é na relação com o espaço”. Mas como entendê-la?
Em latim, temos idêntica origem etimológica das palavras extensão e estender: extendo, -tendi, -tensum, - ere [9]. Ex-tensão, grafada com “x”, entrou para o léxico mantendo o traço semântico original de extensio, utilizado para designar o dimensional de algo. Já o verbo es-tender, grafado com “s”, acaba por substituir o significado de extensio por extendere, cujo sentido é alargar, dilatar etc. Creio que a interpretação bollnowiana da constituição do espaço vivencial e da espacialidade humana, a partir da relação íntima entre ambos, deve ser pensada segundo os termos da primeira e originária - ex-tensão. E aqui faz sentido a frase heideggeriana, onde a existência humana só é o que é na sua relação com o espaço, ou seja, as regiões do espaço vivencial são ex-tensões (dimensões) constitutivas e constituidoras das esferas da subjetividade e da ação humanas; não são dilatações, continuações ou projeções (das últimas sobre as primeiras. Da mesma forma, a poliédrica espacialidade humana não é uma es-tensão (alargamento) dos territórios espaço-vivenciais, mas uma ex-tensão deste.
[1] DELEUZE, Gilles. Logique du Sens. Paris: Minuit, 1969, pp.350-372.
[2] BOLLNOW, Otto Friedrich. Hombre y Espacio. Barcelona: Ed. Labor, S.A, 1969, p.21.
[3] Refiro-me principalmente ao confuso e um tanto indefinido esquema de intencionalidade pressuposto ou desenvolvido (?) no texto.
[4] Idem, pp. 241-270.
[5] Faço menção ao esquecimento como perda de memória (Vergeβlichkeit) da origem genealógica das noções que formam as ciências naturais; origem que, segundo Nietzsche, é a responsável pela outorgação da carga semântica às noções Cf. Über Wahhrheit und Lüge im auβermoralifchen Sinne. Unzeitgemäβe Betrachtung. In: NIETZSCHE, F. Nietzsche. Sämtliche Werke. Band I. Berlin: Walter de Gruyer& Co., 1980, p. 878.
[6] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Ed. Vozes, 1995, p.96.
[7] BOLLNOW, Otto Friedrich. Hombre y Espacio. Barcelona: Ed. Labor, S.A, 1969, p.p.27.
[8] Idem, p.30 (grifo nosso).
[9] GAFFIOT, Félix. Dictionnaire Illustré Latin-Français. Paris: Librairie Hachete, 1934, p.640.
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