Devoção às avessas!
- Vicente Cevolo
- 24 de dez. de 2018
- 2 min de leitura

Devozione (Anônimo)
Certa vez um colega italiano, que cursava Direito na altura, ao encontrar-me recém-saído de uma missa assistida na Basilica di Santa Maria dei Servi, no centro histórico de Bolonha, acusou-me de devoção. Associando inexatamente devoção à carolice obtusa, deu a entender que exemplo maior de fervor não havia, uma vez que, segundo ele, eu participava com “anormal” frequência das celebrações bizantinas, realizadas em catedrais seculares, e lia compulsivamente as obras clássicas. Todavia, o que mais me incomodou não foi a reprovação moral dirigida à minha dedicação sincera à contemplação etnográfica da ritualística cristã e ao fervor apaixonado dispensado aos autores da tradição. O que de fato consternou-me foi o tom pejorativo introjetado nesse estado de afeição absorvente, tratado como se fosse um vício imperdoável, e, o que é pior, o fato desse suposto crítico da devoção enxergar-se livre dela, como se não fosse ele mesmo um enérgico devoto, embora às avessas.
Ora, não há nada de errado com o espírito devoto. Na realidade toda criatura humana transporta no peito uma natural propensão para a devoção. Como recorda-nos Edward Gibbon, em célebre passagem do seu Decline and Fall of the Roman Empire, o problema está no fato de que o Mal, sorrateiro, “desviando a adoração da humanidade do seu Criador”, usurpou “o lugar e as honras da Divindade Suprema” [1]. E, ao usurpá-las, desdenhou da verdadeira devoção, que é a procura sincera das verdades, entulhadas pela porcaria reinante, substituindo-as pelo culto ao não-ser dentro de nós – este “elemento satânico” [2], instintivo, que nos arrasta para a angústia, para a auto-destruição, em suma, para o nada. Assim sendo, após a adulteração luciferina do legítimo sentido da veneração ao absoluto, os devotos autênticos tornaram-se raridades. O mundo mesmo abarrotou-se, como observa Evola, de adoradores dos modos inferiores de vida.
Parafraseando o velho Abujamra, em comparação com o alto grau de entrega às coisas profanas praticada por esse camarada italiano, eu era apenas uma menininha loira com lacinho cor-de-rosa nos cabelos. Embora fiel à integridade, como quem a persegue, ainda me dava ao desfrute de atos pecaminosos, irresistíveis, que feriam a renúncia exigida pelas minhas escolhas e afastavam-me do reto caminho, moderando à força minha devoção. Enquanto isso ele cultivava, em antítese ao que dizia, um tipo muito mais extremo de devoção, a saber, aquela em que o sujeito se abandona - sem prurido algum, desgovernado, com fervor religioso - às formas mais chulas da "repulsiva objetividade” [3].
[0] "Devozione", 76 x 62 olio su tela (autor anônimo).
[1] GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 243.
[2] GENTILE, Giovanni. Genesi e struttura della società. Saggio di filosofia pratica. Verona: Arnoldo Mondadori Editore, 1954, p.11.
[1] Idem, ibidem.
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