A não facticidade da facticidade
- Vicente Cevolo
- 16 de jan. de 2019
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Em Le principe de factualité [1], capítulo III de Après la finitude, são defendidas duas possibilidades de leitura para o que se denomina na obra princípio de irrazão (principe d’irraison). [2] Nessa passagem, Meillassoux sugeri uma interpretação fraca (interprétation faible) e uma forte (interprétation forte) para pensá-lo. No entanto, segundo o filósofo francês, apenas a interpretação forte mostra-se conveniente para conceber adequadamente, ou seja, sem déficit teórico, a irrazão, uma vez que a interpretação fraca, embora coerente em superfície, apresenta uma “contradição intestina” que impossibilita a necessidade absoluta do princípio, que é condição imprescindível para haver irrazão. Quer dizer, ao inviabilizar a condição de possibilidade do princípio, isto é, seu caráter incedível (nec: não; cedo, primeira pessoa de cedere: ceder), a interpretação fraca acaba por bloquear a noção de irrazão e, no mesmo ato, obviamente, refuta-se a si mesma.
Precisamos, portanto, para esclarecer com acerto o fenômeno da irrazão, comprovar a veracidade da interpretação forte, que, como veremos, é a opção hermenêutica que melhor o faz. Todavia, ao invés de empreendê-lo diretamente, Meillassoux propõe alcançar a validade da interpretação forte por via negativa, ou seja, apresentando-a como única alternativa correta para compreender a irrazão por meio da demonstração da suposta invalidade da interpretação fraca. Nesse sentido, explorando a contradição que compromete a sustentação teórica da interpretação fraca, pretende-se explicar e demonstrar a validade da interpretação forte.
Para compreender o raciocínio que nos conduzirá ao núcleo da interpretação forte, calha, à partida, distinguir dois termos diferentes, a saber, "coisas factuais" e "facticidade das coisas factuais", cuja diferença esconde-se em sua interpenetração.
Coisas factuais (choses factuelles, ou, então, coisas contingentes, choses contingentes) é uma expressão que se refere ao onto-natural. Trata-se de uma categoria que abarca os acontecimentos existentes no mundo positivo – suas entidades, eventos e relações - naturalmente atravessados pela antilógica da irrazão. São fatos, e, como todo fato, são naturalmente contingentes, no sentido de contingência (ou facticidade) desenvolvido em Après: a necessidade da não-necessidade (nécessité de la non-nécessité) [3]; como única necessidade. Nos fatos vigora a ausência total do princípio razão suficiente: as coisas não carregam em si nada que as faça – obrigatoriamente – ser isto ou aquilo, ou seja, não portam em si qualquer “razão de ser” (Gottfried Leibniz): podem ser sem razão, transformar-se sem razão e, do mesmo modo, simplesmente não-ser igualmente sem razão;
Já facticidade das coisas factuais (facticité des choses factuelles), como a própria expressão diz, refere-se à irrazão, ou seja, à facticidade em si mesma dessas coisas, a necessidade da não-necessidade
A interpretação fraca refuta-se a si mesma, como disse acima, porque afirma que a facticidade deve ser entendida como um facto, exatamente como cada coisa é-o. Afinal, a facticidade existe, e para ter presença, existir, tem que ser um facto, pois se imaginada na condição de não facto, simplesmente não seria. A facticidade das coisas factuais deve ser, consequentemente, como as próprias entidades, um fato positivo dentre outros.
Entretanto, na ontologia realista, sustentada pelo materialismo especulativo de Meillassoux, advoga-se a tese de que os factos são contingentes. E como vimos, como entidades instabilizadas pela contingência, esses factos são caracterizados pela ausência total de princípio de razão suficiente [4], isto é, “uma razão necessária para ser assim e não de outro modo” [5], podendo ser ou não-ser sem “razão de ser”. Sendo assim, se a facticidade das coisas factuais for um facto como essas coisas factuais, então ela também deve ser contingente, não podendo ser concebida graças a presença de uma essência que a define. Todavia, a facticidade não pode ser ela mesma factual, ou seja, não-necessária. Se o fosse, a contingência da facticidade abriria a possibilidade de a facticidade, como as coisas, ser necessidade da não-necessidade e, daí o problema, não necessidade da não-necessidade, fato impossível, uma vez que a não-necessidade, que caracteriza a facticidade, é, segundo o realismo especulativo, a única necessidade existente nesse mar de fortuidade que é o mundo. Ou seja, necessário é aquilo que não pode não ser, e a não-necessidade não pode não ser, ela deve ser necessária, como único absoluto, para que cada ente seja.
Notas
[1] Chapitre 3. Le principe de factualité. In: MEILLASSOUX, Quentin. Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence. Paris: Éditions du Seuil, 2006, p. 98-103.
[2] Idem, p.99.
[3] Idem, p. 84.
[4] Articolo 32. In: LEIBNIZ, Gottfried W. Monadologia. Bari: Universale Laterza, 1986, p.41.
[5] No original: “à savoir le principe de raison, qui veut que toute chose, tout fait, tout événement, doit avoir une raison nécessaire d’être ainsi plutôt qu´autrement.” MEILLASSOUX, Quentin. Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence. Paris: Éditions du Seuil, 2006, p.45).
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