top of page

O anonimato do homem medieval

  • vicentecevolo
  • 21 de fev. de 2021
  • 6 min de leitura

Atualizado: 19 de mai. de 2021

A Renascença compreendeu muito mal o anonimato do homem medieval ante à obra criada. As explicações que tentam esclarecer a ausência de autoria definida parecem-me inexatas, para não dizer burlescas. A tese âncora desses argumentos é mais ou menos a mesma: ao esculpir qualquer forma na pedra, o homem é tão só “boneco de ventríloco” de Deus, que é o real autor de toda obra humana. Contudo, ao censurar tais explicações não pretendo negar a soberania extrema da providência celestial. Longe de mim contraditar a onipotência deífica, que é fato inconteste. Como diria o psicanalista Umberto Galimberti, se togliamo la parola Dio dal Medioevo non capiamo nulla di quell'epoca[1]. Afinal, Ele é o centro de proporcionalidade da psicologia vassálico-feudal, seu núcleo doador de sentido, sem dúvida. Mas daí a sustentar assim, tão secamente, a ideia de que os artistas da Idade Média não rubricavam suas obras porque criaturas finitas são instrumentos por meio dos quais o sagrado Criador atualiza sua vontade, é uma tese que, embora anipotética, não explica, com suficiência, as razões do anonimato, além de não captar a sofisticação dos labirintos conscienciais do sujeito medieval.

Ao que me parece, a origem imediata dessa leitura unilateral, digamos assim, está na Renascença.

De tão quadrada, a imagem do artífice medievo, desenhada pela pena do renascimento moderno, beira o ridículo. A literatura conta que a viragem antropocêntrica moldou nova concepção de homem, intitulada persona. O indivíduo-persona, diversamente do “dogmático” antropos medieval, encontrava-se livre para ser si mesmo. Corre à boca pequena que o homem-persona lutara, sobretudo através da autoeducação, para desenvolver a profusão de dimensões morais, estéticas e cognitivas que permaneceram encolhidas na escuridão da subjetividade humana, como cães amedrontados, enquanto reinava, no exterior da História, a “despótica” Idade das Trevas.

Para o pensamento dos séculos XVI - XVII, tempo de Marsílio Ficino, Pico della Mirandola, Ludovico Ariosto, Giovanni Boccaccio, com honrosas exceções (talvez um Rabelais), il nuovo uomo, la persona, seria como que o resultado da superação das estreitezas da criatura medieval – a qual intitulo aqui homem-peça. Para os renascentistas, na Época das Sombras, as criaturas eram frações minúsculas e sem autonomia, articuladas (e submetidas) à ação do Todo do qual faziam parte. Quer dizer, segundo esse cincado ponto de vista, os homens eram apenas simples engrenagens maquínicas, conjuntos de rodas dentadas, escravas de uma mecânica central, que dita seu ritmo monótono e que impõe regularidade aos seus movimentos dependentes. Por tal motivo, grande parte dos mestres mediévicos, supostamente presos à névoa espessa do anonimato, não firmavam as suas obras, afinal não eram um alguém. Isso significa que, ao ferir a rigidez do mámore para dar-lhe forma, as mãos de um escultor medieval não eram concebidas como mãos de criador. Ao contrário, eram expedientes através dos quais as tradições supraindividuais, orgânicas à tradição cristã transtemporal, operavam para reproduzir seus dogmas estanques.

Ao eclodir a Renascença, nasce o ateliê moderno. O ateliê revela-nos, como poucos outros lugares na esfera da cultura, a passagem do homem-peça para o homem-persona. Não se trata de uma oficina de aprendizagem, ou seja, nele não existem discípulos fiéis, eunucos de vontade artística, treinados para reeditar a sabedoria de seus totens. Havemos de entender que o ateliê era um laboratório de experimentos da alma orgulhosa, onde não se reprisavam cópias secundárias, mas se concebiam originais de primeira mão. Era um espaço em que se exteriorizava a personalidade inalienável do esteta. No ateliê de Leonardo Da Vinci, por exemplo, quase tudo é davinciano. Suas trinchas são extensões da sua imaginação inventiva e sem peias; suas tintas a óleo, vascularizações de sua mente irriquieta; suas técnicas, tentativas de impor ordem lógica à confusão de mundos que povoam seu espírito. Em princípio, liberadas da tradição escravocrata, as mãos do opífice renascentista encontravam-se enfim desimpedidas para eternizar no concreto as paixões efêmeras – mãos de agora em diante guiadas pelo coração.

Porém, o desaparecimento do artífice medieval frente à sua criação artística possui um senso mais profundo, que a percepção ansiosa dos recém-saídos de jaulas não consegue capturar, e que está vinculada à compreensão do que é a Obra, com O maiúsculo.

No Renascimento, tenho a impressão de que o Autor é figura mais importante que a própria obra. Isto porque a obra não tem valor em si, mas o tem apenas na medida em que é canalização dos sonhos e angústias engavetadas no Eu “reprimido” do artista. Justamente nessa inversão de termos é que se encontra a rejeição renascentista ao anonimato de escultores, pintores e arquitetos da cristandade medieva, para os quais a Obra é mais importante que o autor.

Na ambiência da literatura renascentista, sugere-se que a parcela pró-ativa da subjetividade é anestesiada com a finalidade de transformar o autor em funcionário a serviço dos desígnios inatingíveis do verdadeiro Autor de seus trabalhos. Mas na verdade, o impulso criador não é dizimado pelos medievais. Ele é ensombreado à medida que a obra é produzida, mas não artificilamente. Para a mentalidade medieval, é evidente que o autor é naturalmente menos valoroso, se comparado à obra que ele produz, pois a obra, além de exigir, para ser concebida, o sacrifício acme, a entrega total, biológica e psíquica, daquele que a concebe, é maior do que este, porque flerta com a eternidade, sobrevivendo à vida do microscópico pó que a fez eclodir na Terra.

Durante quatro longos anos, para dar à luz aos afrescos da Cappella Sistina, Michelangelo doou-se desesperadamente à pintura, mesmo sob o risco de causar danos terríveis à sua coluna cervical e de perder a visão para sempre. Decerto, para ele, os seus pincéis estavam engendrando um bem maior do que um trabalho pictórico feito sobre argamassa de cal e areia. Um sumo bem, como talvez dissesse Plotino, acima de qualquer mesquinharia ou felicidade pessoal, porquanto capaz de regalar às gerações futuras uma imagem sensível daquele tipo de grandeza coronal que habita o ar rarefeito das altitudes inescaláveis [2]. Doação do gênero - e riqueza legada - que também são vistas no jovem Giovanni di Pietro di Bernardoni, canonizado São Francisco de Assis. Afim se ver livre da acusação de hipocrisia e concretizar a mais árdua etapa de sua obra de evangelização, a saber, o autoexemplo por meio do voto de pobreza, São Francisco renunciou à fortuna que o comércio de tecidos tinha para lhe oferecer. Pois o que importa o gozo egoísta, se ainda há tempo de agir para ensinar aos leprosos que o seu sofrimento não é inaudível, dado que Deus nunca desampara os seus filhos, ainda que estejam a caminhar no “vale da sombra da morte”[3]?

A meu ver, o que boa parte dos renascentistas não entendeu é que a verdadeira criação de uma obra em qualquer época, principalmente no teocêntrico período medieval, é um gesto altruísta de amor à invenção, que ressuscita e fertiliza a posteridade com sentido, além do amor ao Eu, que definha. À vista disso, Tomás de Aquino não escreveu a Summa Theologiae visando exteriorizar interrogações da mente ou, o que é pior, desdobrar faculdades encaramujadas na sua ipseidade.[4] Tomás sabia muito bem que, ao abandonar a pena, após a confecção da última linha do seu metódico tratado, o que restaria ali seria uma área autônoma, não necessariamente ligada às valências do seu ego, de onde jorram centelhas de verdade acerca de uma doutrina inindentificável com qualquer forma de civilidade, força política ou sistema filosófico, ainda que encarnada no tempo com vestes históricas[5].

Na realidade, em termos de grau de relevância, autor e obra são incomporáveis, há um abismo entre os dois. Costumo dizer que o autor é o fósforo, e a obra, a chama da vela. Certa vez, Pablo Picasso disse que cada acto de creación es, ante todo, un acto de destrucción. Picasso estava correto, pois que para acender a chama da vela e fazer com a luz se perpetue, iluminando as trevas, o fósforo tem que ser incendiado, carbonizar-se, inflamar-se com o fogo crepitante. Em outras palavras, entregar-se à irreversível consumação de si mesmo, precisamente como aquele que cria.



[1] GALIMBERTI, Umberto. La Repubblica delle Donne (articolo) [2] Goethe já dizia: "Sem ter visto a Capela Sistina, não se pode formar uma idéia sensível do que o ser humano é capaz de realizar." [3] Salmos 23-4 [4] Nesse sentido, o jesuíta Marie-Joseph Nicolas, exegeta da Suma Teológica, recorda-nos: nas obras de Tomás, “nenhuma linha foi dedicada a falar de si mesmo e, para conhecê-lo, só se tem a história de sua vida e alguns testemunhos de seus contemporâneos. Nenhuma linha e todas as suas linhas o mostram inteiramente presente a seu objeto, a um objeto que, em todos os outros objetos de que tratou, é sempre Deus.” (NICOLAS, Marie-Joseph. A vida e a obra de Tomás de Aquino. In: AQUINO, Tomás. Summae Theologiae. Edição bilingue (latim-português). Vol 1. Parte I. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p.30, grifo nosso). [5] “La Chiesa comunque non vive ed opera nell’astratto, ma nelle condizioni sempre mutevoli di spazio e di tempo. Eppure, essa non si identifica mai con nessuna forma determinata di civiltà, con nessuna forza politica, con nessun sistema scientifico o filosofico. Essa difende dei valori assoluti, ma questi non esistono allo stato astratto, e per essere efficaci devono incarnarsi nel tempo, assumere una veste storica.” (MARTINA, Giacomo. Storia della Chiesa. Da Lutero ai nostri giorni. Vol I. L’età della Riforma. Brescia: Editrice Morcelliana, 2013, p. 19).


 
 
 

Comments


Destaque
Tags

    Copyright © 2015. Todos os direitos reservados. 

    bottom of page