Comentário sobre o caráter absoluto do princípio de irrazão
- Vicente Cevolo
- 25 de jan. de 2019
- 4 min de leitura

Para o realismo especulativo, o princípio de irrazão (principe d’irraison) não pode - em hipótese alguma, em cenário nenhum - não ser. Ele deve ser! Por isso, é in-cedível [1], ou seja, trata-se de alguma coisa que não se pode ceder, que não se pode abrir mão, pois em contrário haveria o nada e não o ser, e o nada não há. O princípio de irrazão, portanto, é necessário, e uma prova de seu caráter necessário, aliás, segundo se supõe em Après, a única necessidade (eterna) no mundo [2], dá-se na medida em que ele se revela, ao mesmo tempo, anipotético e absoluto. [3]
A anipoteticidade e absolutidade do princípio de irrazão, que, segundo o autor, evidenciam seu caráter necessário, explorando a leitura aristotélica do princípio não hipotético, desenvolvida pelo estagirita no Livro Gamma da Metafísica. Entretanto, o autor o faz expandindo a explicação aristotélica bem além dos limites da lógica, cenário onde Aristóteles vê o princípio atuar originalmente, dilatando-o até os limites da ontologia.
Entre os gregos antigos, o substantivo ἀνυπόθετος, embora não traduzisse a gravidade contida a posteriori no termo latino absolutus, carregava a ideia de incondicionalidade [4]. A metafísica aristotélica conserva tal independência de condições, restrições e limitações externas, inerente ao conceito original, ao defender a existência de uma arché que é indispensável que possua previamente todo aquele que conhece qualquer ente [5]. Sendo assim, para Aristóteles, princípio anipotético é uma proposição anterior a todas as outras, no sentido de que todas dele dependem, e, em vista disso, não dedutível de nenhuma delas [6], que organiza e dá coerência ao pensar humano. Todavia, em razão de seu primado, como condição estruturante, só é possível demonstrá-lo refutativamente (ἀποδεῖξαι ἐλεγκτικῶς) [7]; afinal, deduzi-lo diretamente conduzir-nos-ia à incoerência lógica, uma vez que tal saída negaria sua precedência elementar, haja vista que essa dedução imediata pressuporia a existência de outro princípio anterior a ele.
A demonstração refutatória - importante porque através dela vemos com clareza o significado da anipoteticidade – consiste em confirmar a dependência inescapável à influência do princípio por meio da tentativa de negação desta dependência na construção de todo pensamento e de toda argumentação. Nesse sentido, a cada vez que se tenta contestar a verdade do princípio anipotético, há de se utilizá-lo, ou seja, para destruí-lo recairei sempre no disparate de ter que me submeter a ele. A demonstração refutatória monstra-nos, assim, que a negação do princípio pressupõe, contraditoriamente, o uso desse mesmo princípio. Aristóteles vê, como exemplo por excelência da irrefutabilidade anipotética, o princípio de não contradição, pois “é impossível ao mesmo tempo ser e não ser”, e todo aquele que pretendesse negar a não contradição, submeter-se-ia irresistivelmente a esse princípio ao tentar fazê-lo [8].
Tal e qual o princípio de não contradição, a irrazão também é um princípio anipotético. Entretanto, argumenta Meillassoux, existe uma diferença substancial entre os dois princípios, ligada, como mostrei anteriormente, ao “raio de atuação” de cada um deles. O Livro Gamma apresenta contradição e pensamento como termos autoexcludentes, na medida em que, para construir qualquer período com inteligibilidade na linguagem, é preciso respeitar a impossibilidade de termos ser e não ser isocronamente. Quer dizer, sem pronunciar uma única palavra sobre a inexistência da contradição no real, no esquema aristotélico, o princípio de não contradição diz respeito apenas à impraticabilidade da contradição no pensar, e não no ser: “o princípio de não contradição é, assim, anipotético quanto ao pensável, mas não em relação ao possível” [9].
Todavia, no esquema realista-especulativo, a anipoteticidade perde sua natureza de princípio puramente lógico, relativo aos jogos de estruturação dos conceitos, juízos e raciocínios, para ser entendido como propriedade do real, do qual o pensamento faz parte. Nesse esquema, o princípio de irrazão, além de anipotético, passa a figurar como princípio ontológico. É exatamente nesse sentido que devemos entendê-lo como um absoluto [10]. Da mesma forma que não é possível pensar, para Aristóteles, sem respeitar o princípio de não contradição, não se pode ser, para Meillassoux, sem respeitar o fato de que existem coisas, que poderiam não existir, e que inexistem outras, que poderiam existir, ou seja, de que o devir acontece ou não acontece, é ou deixa de existir... sem razão.
Notas
[1] “Ora, necessário (que vem de nec e cedo, de não ceder) é o in-cedível, o que não se pode ceder para que seja (...), o imprescindível para que seja (...)” (FERREIRA DOS SANTOS, Mário. Origem dos grandes erros filosóficos, p.24).
[2] “Seule l’irraison est pensable comme éternelle (...).” (MEILLASSOUX, Quentin. Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence. Paris
: Éditions du Seuil, 2006, p.84).
[3] “Le principe d’irraison, en revanche, est un principe qui se révèle non seulement anhypothétique mais aussi bien absolu (...)” (Idem, p.83).
[4] PABON, Jose M. Diccionario griego clásico-español (Vox - Lenguas Clásicas). Vox Edición, 2009, p.60.
[5] Em Met. Γ.1005b-15, de fato lê-se: ἣν γὰρ ἀναγκαῖον ἔχειν τὸν ὁτιοῦν ξυνιέντα τῶν ὄντων, τοῦτο οὐχ ὑπόθεσις (ARISTOTLE. Aristotle's Metaphysics, ed. W.D. Ross. Oxford: Clarendon Press, 1924, com citações doravante desta mesma edição).
[6] MEILLASSOUX, Quentin. Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence. Paris: Éditions du Seuil, 2006, p. 83.
[7] Met. Γ, 4, 1006a-12.
[8] Met. Γ, 4,1006a 24-26.
[9] Do original: “Le principe de non-contradiction est donc anhypothétique quant au pensable, mais non quant au possible.” (MEILLASSOUX, Quentin. Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence. Paris: Éditions du Seuil, 2006, p. 83). Leia-se ainda: “(...) à savoir qu’Aristote démontre seulement, par la voie réfutative, que nul ne peut penser une contradiction; mais il ne démontre pas pour autant que la contradction est impossible absolument.” (Idem, ibidem).
[10] “Le principe d’irraison, en revanche, est un principe qui se rèvéle non seulement anhypothétique mais aussi bien absolu” (MEILLASSOUX, Quentin. Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence. Paris: Éditions du Seuil, 2006, p. 83).
[3] “Le principe d’irraison, en revanche, est un principe qui se révèle non seulement anhypothétique mais aussi bien absolu (...)” (Idem, p.83).
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