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Nem bottom-up, nem top-down!

  • Vicente Cevolo
  • 23 de nov. de 2018
  • 6 min de leitura

[Trecho do relatório entregue à comissão avaliadora da disciplina Métodos e Planejamento de Pesquisa (UFABC, 2018)].


Após algum tempo de imersão na cultura estadunidense do pós-guerra, Eric Voegelin, ao colocar em xeque a pertinência epistemológica dos pesados aparatos neokantiano e neopositivista da época, aos quais estava aclimatado, acaba descobrindo a fecundidade espontânea da “mente americana”. Segundo Voegelin, a mentalidade européia clássica, que ele conhecia de perto desde a juventude em Viena, mormente versava a respeito de uma existência lógica dada a partir de categorias apriorísticas, por vezes vazias de substância vital, muito embora coerentes e irrepreensíveis sob o ponto de vista das formalidades. Como se fossem conglomerados intestinos à história das ideias, acantoados das práticas sociais, os problemas do mundo pareciam brotar da complexidade abstrata dos sistemas de pensamento, das suas formas de recepção e das suas categorias estruturantes.


À contraluz dessa proposta no mínimo pseudo-idealista para a qual se encaminhava a classe pensante da então Europa belicista, o contato com a mentalidade norte-americana ensinou a Voegelin algo muito importante, que setores embrionários da antropologia já desconfiavam há tempos. Ensinou-lhe que olhos sábios e bem treinados, que não apenas veem as coisas, mas as enxergam como sugeriu um dia Santo Agostinho, devem perceber que os problemas concretos, ao invés de saírem da alcova das abstrações, na verdade surgem das vicissitudes dos homens de carne e osso. Voegelin percebeu que se escarafunchasse com rigor o quotidiano não previsto pela radiografia das formalidades, sem medo de se “sujar” com fatos, talvez descobrisse que a própria realidade é capaz de sugerir princípios hermenêuticos para sua interpretação.


Essa lição perpetuou-se com robustez no espírito de Voegelin até o final de sua vida terrena, definindo o desenho básico assumido por seu trabalho acadêmico posterior. Trocando em miúdos, digamos que ele havia compreendido a profunda simbiose existente entre pensée e évènement, como dizem os franceses. Melhor dizendo, por um lado, aprendeu a avaliar, sem a implicância dos empiricistas, a decisiva atuação analítica do conceito sobre a formação dos encadeamentos reais; por outro lado, sem se deixar alienar como os racionalistas mais prosélitos, desfez seus antigos “ouvidos de mercador” para o fato dificilmente contestável de que a realidade não pode ser confundida in totum com as operações intelectuais que pretendem esquadrinhá-la em sua organicidade.


Em realidade, a altercação - dedutivo-indutiva/ indutivo-dedutiva - vivenciada por Voegelin lança luz sobre as duas tendências inexoráveis de toda reflexão. Por mais que se invente e reinvente, o juízo acadêmico, perquiridor severo, sempre oscilará entre tais inclinações cogitativas, pesando a balança mais para um lado ou para o outro, a depender da estrutura metafísica de alicerce, por exemplo, ou de decisões no escopo metodológico.


No decurso do seminário Métodos e Planejamento de Pesquisa, a despeito de exceções nos momentos principiais de discussão teórica e em algumas exposições de projeto de pesquisa, não percebi nenhuma adução realmente séria quer da tendência top-down, digamos assim, quer da tendência bottom-up.


No que se refere à vocação mais empírico-contingencial e, portanto, menos genérico-especulativa, a saber, a dos trabalhos mais avezados aos “diários de campo” e aos seus imponderáveis, em geral observei no palco do seminário encenações meramente protocolares, isentas de consciência epistemológica, muito embora plenas de boa vontade, que excluíam o efetivo rastreio da verdade dos termos. Ali, a última coisa que se perseguia, a meu ver, pensando com a cabeça de um teórico da argumentação, era o delineamento honesto das valências concretas consubstanciadoras dos respectivos objetos de investigação em agenda. Ao invés disso, vi as realidades pontiagudas desses objetos de estudo, penso eu problemáticas em si, quando não controversas, transmutarem-se, a passo e passo, por meio de traquejos de alquimia ideológica, em protótipos ideais quase sem pontas, evidentemente aparadas para que tais realidades se ajustassem ao viés da linguagem que tentava reconstruí-las ao sabor de suas opções categoriais - todas orientadas à margem esquerda do rio.


Por mais desajustada que estivesse a minha “antena” em relação a minúcias técnicas dos temas articulados, e de fato estava, juro que nessas interlocuções formais duas transmissões mostraram-se bastante claras para mim: as diretas e as indiretas, cujo teor apenas confirmava a tendência, posta em prática ali, de aprisionar a ontologia em um sistema abstrato, metamorfoseando-a.


Nas transmissões diretas, correspondentes ao plano positivo das apresentações, e por que não das discussões em círculo que as complementavam, ovacionava-se, democraticamente, a problematização das relações sociais nos seus diferenciados graus de correlação e modos de conjunção (agência, instituições, estruturas, etc.). Essas transmissões atuavam, sobretudo, como canais para a análise criativa da diversidade de poiésis humanas – psicológicas, literárias, musicais, políticas - excluídas dos principais vereditos sociais. No entanto, nas transmissões indiretas, contrariando sub-repticiamente o clímax de isegoria aparentemente existente no plano positivo da interação, intentava-se impor, muito à mineira, certos esquemas de sentido, de verdade e de ser ao mesmo tempo em que se declarava guerra semântica, com impiedade espartana, sem direito de defesa, aos fundamentos da milenar cultura judaico-cristã.


Tal qual no conto O Homem dos Sonhos [1] , do lisboeta Mário de Sá-Carneiro, em cada nova comunicação, cuja visão revolucionária implícita era endossada de modo incrivelmente catártico pela platéia, sentia-me convidado a sonhar a vida e a viver o sonho. Quer dizer, a sonhar a vida, obliterada que estava por violentas avalanches de cacoetes mentais, conceitos mal digeridos e lugares-comuns que nas entrelinhas excluíam a possibilidade de todo contraditório estranho aos manuais ali ventrilocados, e, em contrapartida, a viver o sonho ficcionalmente construído pela hegemonia da precipitação normativa (o que o mundo deve ser?) sobre a serenidade metafísica (o que é o mundo?), insistentemente presente no centro nevrálgico das apresentações.


Agora no que refere à vocação mais genérico-especulativa e menos empírico-contingencial, a situação foi ainda mais dramática, para não dizer anômala.


Desde que o ensino secundário deixou de se preocupar com o aperfeiçoamento moral dos indivíduos e com o aprimoramento intelectual desinteressado que conduz ao saber genuíno, como almejavam as artes liberais (Trivium/ Quadrivium) do passado, o aluno vem se transformando, progressivamente, como é sabido, em mero reservatório de informações pueris, mais afinadas com a propaganda política e com o humor do mercado do que propriamente com o conhecimento. Com efeito, em função de sua inflação histórica, é natural que esse grave déficit pedagógico, ocorrido nos primeiros anos de formação escolar, adquira elasticidade suficiente para estender-se até aos umbrais da pretensa “alta cultura”, instalando-se com ímpeto entre nós. Sem se intimidar com títulos e togas de cátedra, que se converteram em burocracias propulsoras de carreira, a negligência com respeito à importância da formação erudita [2] estatui o molde do ensino superior de hoje, afetando naturalmente o nosso seminário.


Em razão da ausência de formação clássica, os discursos enunciados pareciam cegos defronte à genealogia de sua própria armação teórica e às suas conseqüências imediatas. Assemelhavam-se mais a enormes conglomerados de informações, compostos por dados estatísticos, relatos jornalísticos, registros de senso comum e citações de textos, sem amarração conceitual. Pareciam frutos do pensar apenas em casca, em cápsula dourada, sem conteúdo pensado.


(...)


*



Nota: Pensar, como nos recorda Emmanuel Carneiro Leão [3], tem sempre duas possibilidades: ou bem pensar o já pensado pelo pensamento, repetindo-o sem trégua, ou bem pensar o ainda não pensado pelo já pensado pelo pensamento, ou seja, ter a coragem de criar o inédito. Ali não encontrei nem a primeira hipótese, na medida em que não havia formação clássica para tal, nem a segunda hipótese, na medida em que não havia consciência conceitual (e vontade) para o referido empreendimento.




Referências Bibliográficas


1. SÁ-CARNEIRO, Mario de. O homem dos sonhos. Lisboa: Livraria Brasileira Monteiro & Companhia, 1915, pp. 125 – 138.


2. “Ne chargez pas le sol avec excès; ne poussez pas la construction plus que ne permet la base, ou avant que la base ne soit affermie: ce serait faire en sorte que tout s´effondre.” (SERTILLANGES, Pe. Antonin-Gilbert. La vie intellectuelle. Son esprit, ses conditions, ses méthodes. Paris: Éditions de la revue des jeunes, 1921, pp. 31 -32).


3. “Aprender a Pensar não é aprender a pensar como pensaram os pensadores e sair repetindo as grandes palavras do pensamento. Aprender a pensar é ter a coragem de aceitar os desafios sempre antigos e sempre novos do pensamento. O legado de um pensador mora no apelo que nos faz de pensar o ainda não pensado pelo já pensado do pensamento.” (CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Aprendendo a pensar I. O pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon Editora, 2008, p. 05).




 
 
 

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