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COMENTÁRIO SOBRE A GRAVURA 43 DE “CAPRICHOS” DE GOYA

  • Vicente Cevolo
  • 22 de set. de 2018
  • 10 min de leitura

No inverno de 1799, o pintor aragonês Francisco de Goya y Lucientes apresentou ao público madrileno a primeira edição da mais talentosa expressão gráfica dos vícios humanos em fins do período setecentista. Goya intitulou-a Caprichos. Surgida no período esclarecido ponterior ao Século de Ouro espanhol, coroado por Velásquez, Caprichos é um album sombrio de gravuras satíricas, que provocaram, na altura, a ira do Santo Ofício católico. Cada gravura laureia o público com uma ligeira nota anedótica, gravada na margem inferior, cujo propósito é chacotear as circunstâncias vivenciadas pelos protagonistas, quando não aprofundar o seu enigma. As cenas burlescas, em geral, denunciam as superstições enraizadas no antigo regime espanhol e a hipocrisia por trás dos vezos sociais. Ali vemos escarnecido, por exemplo, o fundo mesquinho mascarado na aparente retidão moral dos costumes fidalgos, assim como a pândega do cotidiano eclesiástico, imerso na licenciosidade. Em Caprichos, Goya liberta a noite bestial que se oculta na claridade perpendicular do dia.


No entanto, a célebre série pictórica de Goya não se resume a “flagelar a ignorância do povo, os vícios dos monges e a estupidez dos grandes” [1]. Não nos esqueçamos de que essa série já prenuncia o período das chamadas Pinturas Negras, programa iconográfico introspectivo, que compõem a última fase da linguagem artística do autor. Nas quatorze obras murais, nascidas da surdez de Goya, o grotesco aponta cada vez menos para a crítica social e cada vez mais para o mistério incomunicável de uma existência ameaçada pela extinção. Nesse sentido, para além da censura moral por vias do humor zombeteiro, Caprichos evidencia, desnudando a indigência humana mediante o exagero caricato, a ὕβρις que inunda as coisas dos homens, e que os destina, em última instância, à loucura, ao absurdo e aos confins dos desejos quiméricos representados na obra.


Das oitenta impressões ali gravadas, algumas se destacam por traduzir ideias do pensamento [2]. Destas gravuras que dão tateabilidade a noções abstratas e pouco intuitivas, a mais perturbadora é, decerto, a água-forte n° 43. Nela se observa um fundo tétrico, habitado por criaturas sinistras que sobrevoam um indivíduo anônimo, adormecido sobre um papel recém-escrito. Na mobília de apoio, em seu frontispício, lê-se a enigmática legenda: “O sonho da razão produz monstros”. [3]


A mensagem capital - perdida no silêncio da gravura, se é que ela há– resiste à frieza analítica das interpretações. É quase certo que as feras noctívagas personificam a imaginação; o corpo, o sujeito que pensa, e agora repousa; o papel, a poiesis da razão. Mas quem os observa não sabe responder se a razão que apreende o real sonha, sendo o sonho um momento de devaneio da razão, ou se a razão, enquanto instiuição fictícia, promanada das concavidades da história, faz parte do próprio existir que é sonho. No sutil jogo goyiano de luzes e sombras presente no entalhe, a decisão do que é realidade e do que é irrealidade não é imposta; antes, ela é entregue à ideação do indivíduo que contempla. Não se sabe ao certo se o nível consciente da razão, suspenso por um átimo, é a realidade positiva, e as bestas que a envolvem são o plano imaterial do imaginário, ou se o nível negativo da imaginação, povoado pelos vultos oníricos, é que é a “realidade”, e a razão, incapaz de despertar de sua letargia para dissipar as sombras evanescentes do insólito, é ela mesma alíquota dessa notte fonda.


No decurso dos duzentos anos de existência dessa pitoresca gravura muito se especulou a respeito do significado logogrífico de sua mensagem subliminar. O Museo del Prado, que abriga em seu acervo as composições mais insignes do pintor, reconhece como válida a constatação de que a tradição decodificou El sueño pelo menos no interior de três eixos interpretativos [4].


Se El sueño foi concebida por um Goya iluminista, o ícone estampado pode ter dois entendimentos.


À partida, o “sonho da razão” pode referir-se simplesmente à inatividade da única faculdade apta a enxotar os ídolos que dissuadem o intelecto natural da veraz sapiência. Ao hibernar, o sistema de regras capaz de estabilizar a agitação perceptiva, fruto da multiplicidade sensível, e gerar inteligibilidade na forma de juízos coerentes, abandona os mortais à mercê do arbítrio supersticioso, ou seja, das crenças em meros presságios, motivadas por coincidências fortuitas, sem qualquer relação atestável com a empiria. Esgotado o poder de vigilância de sua autoconsciência, a ipseidade que se monitora a si mesma perde o senso de proporções e desata a fabular idiossincrasias monstruosas.


Nesse mesmo panorama hermenêutico, o idílio pode ser entendido como a circunstância em que a razão, convicta de sua onipotência, decide agir como se não tivesse termo. Eis o momento em que a razão deixa de sonhar com olhos fechados para fazê-lo de olhos abertos, julgando hospedar-se em patamares que sequer é capaz de perscrutar com seu finito arranjo categorial. O esvaecimento da consciez é uma disposição perigosa, que começa quando o elemento racional transpõe o seu limiar de atuação possível. Diante de dimensões onde não são válidos os princípios lógicos, para continuar a pensá-los a razão tende a substitui-los, inconscientemente, pelas pulsões indistintas do imaginário e de seus moinhos de vento. O quociente é sempre a produção de raciocínios sofísticos, “que não contêm premissas empíricas” [5]. Construções suntuosas feitas de nadas [6].


Mas a inegável sensação de esgotamento total transmitida pela alegoria entorpecida associada à gritante vitória das castas da noite, cuja caligem se assenhora sequiosamente da paisagem, impede-nos de descartar a possibilidade de El sueño ter sido realizada por um Goya pessimista.


Nos termos da dupla condição que dilacera toda antropologia, perenizada na caligrafia de Schopenhauer, digamos ser plausível supor que a gravura pleiteia dramatizar o fracasso dos projetos ilusórios forjados pela “subjetividade do indivíduo” para furtar-se às imodificáveis exigências da “subjetividade da espécie”, vinculadas à finitude e sua conservação.[7] De fato, o figurante prostrado transmite-nos a ideia de alguém que depois de muito pelejar com suas tintas pelo êxito da razão autoconsciente, capaz de verdadeira liberdade, sucumbiu, exausto, aos pés da animalidade cega, escrava dos instintos básicos, perdendo o sentido do mundo e de si mesmo.


Em outras palavras, a prostração casmurra do indivíduo parece raiar do inverno de sua alma. Como sugere Vivaldi na última de suas Quattro Stagioni [8], na invernidade de nossas almas, a chegada implacável dos sopros gélidos representa a aproximação de um momento de profunda interiorização, que nos prepara para um destino incerto. Cientes da nulidade de qualquer resistência face ao arrastar insensível de nossa constituição natural na direção do inverno da vida, resta-nos entregar-nos com amargura e, sobretudo, com serenidade aos torvelinhos indistintos, gerados pela pugna entre todos os ventos (simbolizada ali pela fauna mefistofélica em profusão).


No entanto, apesar do coeficiente de veracidade dessas duas chaves hermenêuticas, a mais persuasiva sugestão para extrair a lição áurea da gravura deve ser sondada, a meu ver, no rendez-vous mal esclarecido entre os resíduos barrocos, originalmente assimilados por Goya, e a racionalidade neoclássica[9] que lhe dá musculatura para materializar sua rebellioni carnis, sem se carbonizar em suas flamas. Mais especificamente, devemos entender El sueño como uma tentativa de despertar o expectador para os perigos da tendência psicótica[10] da faculdade que nos consente desrespeitar os mandamentos da realidade, a fantasia, tão cara aos “amantes de antíteses” do século XVII e ao mesmo tempo deveras hiperbólica para o temperamento sóbrio da nova estética do século XVIII.


Todavia, o crítico moderado da fantasia, que repreende o abuso de liberdade onírica, não esteriliza o entusiasta dos rebuscamentos barrocos, visto que ambos coexistem paradoxalmente no cavalete de Goya. Criticar a soberba do poder imaginário não significa de modo algum menosprezá-lo enquanto exercício de desilusão capaz de desfazer a confiança ingênua nos esquemas do entendimento; menos ainda equivale a desprezar seu papel inolvidável no decurso criativo.


Sempre que contemplo a sensualidade de Sette opere della Misericordia [11], de Caravaggio, ou, então, a irresolução óptica em Filosoof in meditatie [12], de Rembrandt, entendo, em olhar retroativo, por que, para o barroco, a criação é escrava das obsessões da fantasia. Ao que tudo indica, a suspensão momentânea da gravidade do real, havida na arbitrariedade irrestrita do imaginativo, propicia a autonomia desinteressada e, além dela, o atrevimento indispensável para o ato criador.


Criar significa fazer eclodir no plano da atualidade algo que ainda não é amiúde sequer em latência. Melhor dizendo, do aparente (ou factual) breu da indistinção “esculpir” alguma forma de atualidade que nos seja preciosa. Mas antes de transmutar o incabível prontamente em um possível na efetividade, é forçoso que tal estado inconcebível como presentificação na realidade tenha primeiro tornado-se concebível no campo da impossibilidade do impossível, ou seja, na dimensão do imaginário, onde o impossível, em tese, encontra liberdade para ser imaginável. Só depois de o que era impossível imediatamente ter-se estabilizado como situação admissível na ideação sonhadora, é que somos capazes de elaborar os meios formais e materiais para dar-lhe identidade na concreção. Ir tecnicamente à Lua revela-se mero detalhe diante da lenta história de formação de sua viabilidade no imaginário coletivo. Antes de acontecer, cada evento deve tornar-se admissível, e só a imaginação é capaz de elevar o agora inexiste, e ainda improvável à visão confinada à inflexibilidade inegociável do real, à categoria do possível, antes mesmo que ele exista.


A escatologia da dor[13], esculpida pelo barroco, faz transparecer, de modo acertado, que todo ato de criação depende de certa dose de embriaguez na fantasia. Sem a puerilidade do sonho – plena ausência de sustentáculo para os pés e amparo para as mãos -, apenas desperto, atento ao chamado à maturidade da ordenação concreta, não se cria absolutamente nada.


De igual modo, o entusiasta barroco da fantasia, iconoclasta dos ídolos criados pela ingenuidade epistemológica, não imobiliza o crítico moderado de seus descomedimentos que há em Goya. A locomoção à fertilidade do quimérico deve ter retorno. Se lá permenecer, o homem corre o risco de, encantado pela plasticidade da atopia, inventora de seus próprios critérios, tentar envergar inutilmente a “espinha dorsal do mundo”, na tentativa de moldá-la às vontades imponderáveis dos desejos humanos; remodelá-la à sua imagem e semelhança.[14]


Ainda que tenha se desonerado técnica e ideologicamente dos padrões estéticos vigentes na academia madrilena, como é claro, à medida que amadurecia suas pinceladas rumo à Quinta del Sordo [15] (ecos de tenebrosidade barroca), vê-se até mesmo que seu último óleo sobre tela, La lechera de Burdeos [16], preserva a exigência neoclássica de desvencilhar a arte da overdose alienante de fantasia. Desenbaraçado das tempestades da vida, que seguramente acompanham Goya até o seu último instante [17], vemos ali a vontade de retratar, com renovada litografia, uma camponesa inocente, ex integro, sem a necessidade de olhares agourentos e fisionomias cadavéricas.


Se um dia a fantasia serviu ao homem barroco para dar voz às incógnitas que tumultuam essa escuridão que é a luz do devir natural e da substância moral, no dia seguinte, traindo a confiança que lhe fora outorgada pelo desespero humano, pôs-se a entulhá-las, encobrindo seu espaço bruto com eufemismos reconfortantes e sua monotonia temporal indiferente com antropomorfizações doadoras de sentido. De fato, em excesso a fantasia alheia a razão com suas fábulas, aliviando com delírios miríficos as dores da barbárie mundana e a consciência das valências de sua finitude. No entanto, ao invés de apartar o sujeito do contato angustiante com as atrocidades existenciais, iludindo-o em um além-mundo suavizado, não é função da fantasia na genuína arte destapar de modo venusto ou cru, singelo ou críptico, a barbárie real imperante no coração humano?


Sem a menor dúvida! O papel precípuo da fantasia nas criações do espírito - quer intelectuais, quer artísticas - não é o de enrevesar a proporção das coisas, como se poderia crer, aliciando o sujeito a substitui-las pela proporção das ideias. No processo criativo, algo semelhante ao estranhamento de si do método etnográfico, transitamos dos padrões de inteligibilidade que nos são familiares aos padrões não familiares (excêntricos). Todavia, fazemo-lo não apenas com vistas a esclarecer o que nos parece extravagante, que no convívio com outrem, o oposto assimétrico de nós, tende a tornar-se habitual; fazêmo-lo principalmente para que, em contato com o estranho, o que nos é mais familiar, e que a própria familiaridade ofusca, torne-se estranho e, portanto, visível devido à sua inaturalidade. Como nas tragicomédias de Samuel Beckett, as cenas bizarras, que em princípio destoam tão radicalmente do viver regular, não visam demenciar o leitor, alienando-o no universo de incongruências formadas por detritos de linguagem. Antes, visam conduzi-lo paulatinamente a dobras labirínticas do existir, que a vida sã não se dá conta por estar imersa nelas.


Para haver criação, a gravidade da ordem real deve ser “suspensa”, mas em tempo algum abandonada.


Em El sueño, a indisciplina dos animais noctâmbulos que se desencarceram com virulência do controle estabilizador do sujeito anônimo, já completamente esmorecido sobre a pena, anuncia o triunfo da atividade imaginativa - que se transmuta em “realidade” para sentenciar o programa racional à mera irrealidade ao lado de si - sobre o nível positivo da razão, que se utiliza do plano imaginativo para acessar as invariantes essenciais que não se confidenciam à consciência empírica imediata.




CONTINUA ....



[1] “flagelar la ignorância delpueblo, losvicios de losmonjes y la estupidez de los grandes” (MATILLA, J. M. "Caprichos", Goya entiempos de guerra. Madrid:Museodel Prado, 2008, pp. 170).


[2] GONZÁLEZ ZÁRATE, J. M. Goya, de lobello a lo sublime. Ephialte: Vitoria,1990, p.12.


[3] “El sueño de larazonproducemonstruos” (Gravura n° 43. In: Caprichos de Goya. Junta Delegada de Tesoro Artistico. Biblioteca Nacional de España. N° ind. estampas a.° 45654, 1799).


[4] Alcalá Flecha


[5] Kant Crítica A339 p.351.


[6] ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço & Tempo, 1990, p.41.


[7] SIRIGU, Paola. Nietzsche, l'immoralista sublime. Milano: Feltrinelli, 2013, p.373.


[8] Concerto para violino, cordas e contínuo Op.8 nº4 RV. 297 em Fá menor – “Inverno” (Cf. FAVERO, Riccardo. Le QuattroStagioni e La Follia. Mussolente:Oficina Musicum, p.6).


[9] Integralmente desenvolvida nos trabalhos de Winckelmann (1717-1768), Antonio Canova (1757-1822) e Bertel Thorvaldsen (1770-1844), para citar apenas três exemplos.


[10] Admitindo aqui o traço semântico mais elementar do termo psicose, isto é, “perda de contato com a realidade e criação de ‘realidades’ segundas”, tomado de empréstimo, por analogia, de outros saberes (psicologia clínica, psicanálise, etc.) que o concebem em sentido rigoroso e não figurado.


[11] Michelangelo Merisi da Caravaggio. Sette opere della Misericordia. 1606-1607. 1 original de arte, oliosu tela, 390 x 260 cm, Pio Monte della Misericordia (Napoli).


[12] Rembrandt Harmenszoon van Rijn. Filosoof in meditatie.1632. 1 original de arte, óleo sobre madeira, 28 x 34 cm, Musée du Louvre (France).


[13] Boécio sintetiza-a como ninguém: “Assim, pois, o gênero humano, procedendo daquele primeiro homem e crescendo em grande número, precipitou-se em disputas, suscitou guerras e adentrou na miséria terrena, aquele mesmo gênero que, no primeiro pai, perdera a felicidade do Paraíso” (De fide catholica, 115. In: BOÉCIO. Opuscula sacra. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.153, grifo nosso).


[14] Gênesis, 1:26.


[15]Casa de campo na qual viveu Goya antes de seu exílio, e em cujas paredes o artista talhou originalmente as intituladasPinturas Negras.

[16]Francisco de Goya y Lucientes, La lechera de Burdeos. 1827. 1 original de arte, óleo sobre lienzo, 74 x 68 cm, Museo del Prado (Madrid).

[17] MCNESSE, Tim. Francisco Goya. The great hispanic heritage. New York: Chelsea House Publishers, 2008, p. 135-136.


 
 
 

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