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DO SUJEITO DE CULTURA AO CORPO SUBCULTURADO

  • Vicente Cevolo
  • 15 de jan. de 2016
  • 34 min de leitura

Figura 1 - Gilberto Sanmartini, o pintor das névoas

1. O Acontecimento Pré-Metafísico

“Événement: il faut entendre par là non pas une décision, un traité, un règne, ou une bataille, mais un rapport de forces qui s'inverse, un pouvoir confisqué, un vocabulaire repris et retourné contre ses utilisateurs, une domination qui s'affaiblit, se détend, s'empoisonne elle-même, une autre qui fait son entrée, masquée.”[1]



Qualquer acontecimento – seja ele anímico (e.g, “o enfurecer”), onto-natural (e.g, “o desabrochar de uma flor”), ou ainda sócio-histórico (e.g, “a falência de uma instituição secular”) – significa, num só tempo, a realização de um número finito de possibilidades e a frustração de infinitas expectativas acumuladas. Não obstante, todo evento implica, em seu dinamismo, um processo incontrolável e incomensurável de concretizações e fracassos, de satisfações e desapontamentos, de irrupções violentas, vitoriosas, acompanhadas de desaparições avassaladoras. Feito de revoltas e frágeis conciliações, não se trata de um essere semplice.


Especialmente entre os gregos trágicos, os acontecimentos em si, a composição de seu magma, as razões de sua gênese eram objeto de incalculável significatividade tanto para o saber contemplativo quanto para o saber prosaico. Não é por menos que os antigos fisiólogos se referiam aos acontecimentos lançando mão de formas verbais com ampla gravidade cosmológica. Consequentemente, por um lado, associavam-no à atividade do primitivo verbo φύω (phyo), hipocentro da reflexão pré-platônica; por outro lado, designavam-no com o verbo depoente γίγνοµαι (gígnomai), seu conhecido epicentro.


De teor polissêmico intrincado, φύω dá idéia de força plástica na voz ativa (φύ-εις, φύ-ει, φύ-ομεν, φύ-ετε, φύ-ουσιν, e.g, no sentido de “fazer brotar”, “fazer nascer”)[2], enquanto que sugere, na voz média, a idéia de força partícipe (φύ-ομαι, φύ-ει, φύ-εται, φυ-όμεθα, φύ-εσθε, φύ-ονται, e.g, no sentido de “brotar”, “nascer”) [3]; daí φύω indicar uma natureza geratriz e sempiterna (φύσις), que se manifesta no movimento. Já o verbo γίγνοµαι encontra sua melhor interpretação quando pensado na forma nominal gerúndio; se o traduzirmos por devindo (lato sensu: “o que vem a ser”), ao invés de devir, no rijo infinitivo, conservaremos a idéia da ciclicidade dialética ininterruptível de geração e corrupção, presente na grafia original.


Ambas as formas verbais, de raiz indo-européia, parecem sugerir o desenho, na linguagem, da anatomia (estruturação) e da fisiologia (funcionamento) do acontecer.


Assim sendo, podemos compreender o acontecer, anatomicamente, como uma sorte de abertura infinitesimal, com densidade inacabável, dilacerada por determinações ambivalentes. Nela se intersecta, ou coexiste, se quisermos, a complexão rebuscada de fenômenos, sinergias e entidades positivas, que compõe a face inteligível do acontecimento em si, e as zonas de pura inescrutabilidade e impronunciabilidade, esfíngicas, superiores à técnica antropológica apenas capaz de apreender e sistematizar o elemento concreto do evento.


Seguindo o fio de Ariadne proposto, esse mesmo infinitésimo inaugurado por direções ambivalentes, o acontecer, também pode ser esclarecido a partir do ângulo fisiológico. Logo, podemos esquadrinhá-lo funcionalmente, fraturando-o, outra vez, em dois âmbitos, a saber, o domínio das intercorrências “transitivas” - menos no sentido latino de efemeridade mutante (adj. transitivus, de transeo: passar que modifica) [4], e mais no sentido gramatical de uma incompletude, cuja substância é a concentração dos efeitos de seus complementos - e a orbe da “intransitividade”, qualidade do que é autossuficiente e intransmissível (intransitivus).


Posto isto, à ordem da transitividade façamos corresponder, então, à superestrutura que se encontra representada na significação ativa resguardada na morfologia passiva de γίγνοµαι, isto é, a mecânica aleatória de construção do existir, suas mediações e intercambiamentos, que intitularemos acontecido; e à ordem da intransitividade, permitamos que corresponda ao inextinguível redemoinho negativo, à infraestrutura imanente do mundo, o não acontecido.



1.1 O Acontecido


O acontecido é efervescência vital, emasculada, pletora de dispersões irregulares e disjunções inessenciais, sem núcleo lógico-racional que as induza à correlação apodítica. Mutatis mutandis, ele representa o jogo de ressonâncias de cuja complexidade surge o mundo real. Em sua dynamis, acelerada, ramificam-se formas de não integração de todo gênero. À vista disso, hostis à hermeticidade generalista que confina, surgem as “individuações impessoais”, aglutinações extensas, dissidentes, que para edificar inintencionalmente o volume do acontecido mesclam-se aos permanentes estados de deformação e desestabilidade, as “singularidades não individuais”, sinopses confusas e/ou imediaticidades precedentes à formação de qualquer estrutura cônsona. [5]


Dispersas, conferindo métrica ao exaurir das permutações na distribuição dos elementos [6], sem ser estímulo “interno”, as formas não integrativas fazem do acontecido uma atmosfera instável. Em seus jogos formativos, elas envolvem abrangentes tipos de espacialidade (planos, dobras, curvas, declínios, zênites, etc.) e variantes de temporalidade (linear, espiralada, elíptica, descontínua, etc.). Essas tipologias de espacialidade e abordagens de temporalidades - constituidoras dos (e condicionadas pelos) fenômenos positivos, estados de coisas, nexos ônticos e entidades finitas - devem ser retratadas, ainda que de maneira incomplexa, em conformidade com a mais extensa ordem de permutações e níveis de probabilidade. Para efeito de síntese, podemos pensá-las enquanto combinações exaustivas entre os três modos canônicos de tempo (passado, presente, futuro) e as três dimensões cabíveis de espaço (rigidez, fluidez, infinidade).


Tal qual descargas de alta tensão, a capacidade de impôr variações, próprio das temporalidades, faz vibrar a estrutura intrínseca das espacialidades, reesculpindo suas individuações e singularidades disformes. O passado prende a ipseidade do espaço na rigidez de uma quantidade finita de predicados concretos, transformando-a em definitivo ossificado; o presente, conceito de relação, decompõe-na, ao mesmo tempo, no movimento incessante de predicados pretéritos (inscritos na esfera do “imediatamente antes” do agora) e futuros (pertencentes à esfera do “imediatamente depois” do agora), convertendo-a em simultaneidade, ou seja, em rotação permanente, com características do se passou e também do que se passará, sem atingir absolutamente nenhuma delas exatamente por sê-las ao mesmo tempo[7]. Girando como um caleidoscópio, a futuridade traça, por sua vez, uma ipseidade diversa da do espaço pretérito, mumífica e definida, e da do espaço presente, oscilante e dupla; incógnito, o futuro projeta a ipseidade do espaço como possibilidade sem atualização.


Se as variantes temporais – nada mais que sincretismos coesos, oriundos do amálgama entre modalidades de tempo e espaço dissonantes - têm o poder de remodelar, no acontecido, as camadas mais íntimas das espacialidades por meio da energia desintegrativa de suas durações, a tipologia das espacialidades tem, por conseguinte, a capacidade de transmutar, no mesmo acontecido, o ritmo dos tempos, seu valor e sentido ídeo-histórico.


Assim é que o espaço pretérito, como definitivo conjecturado, suposto, não se resume a retratos empoeirados e ossos enegrecidos; é um fantasma que constantemente ressurge das cinzas, para metamorfosear o sentido do tempo presente ao ser reinterpretado. De modo símile, o espaço futuro, mescla de expectativa incerta e esperar ansioso, está sempre sucessivamente depois do decesso, habita um longínquo após imorrível, afastado eternamente do fim absoluto. Como abertura ao inédito, o futuro não tem fim e, por não o ter, é permanente viabilidade do presente, a possibilidade de sua existência contínua; se não houvesse interferência do espaço futuro, não haveria presente, e o tempo estaria para sempre aprisionado ao passado.


Conteúdo resultante da cópula entre as vibrações transformativas do tempo e a receptividade transformadora do espaço, o acontecido, portanto, é manière d’être do acontecimento, ou melhor, suas intermináveis possibilidades de ser, sua parcela determinada. Equivale ao mundo orgânico-inorgânico existente, aos seus macro e micro sistemas, mas igualmente às convenções justificadas, aos cômputos ideacionais objetivados, às predicações acidentais, aos rizomas multiformes e instáveis. Perfaz a alíquota “visível” do evento.[8]



1.2 O Não Acontecido


À contraluz da ordem anterior, transitiva, rotação de subjetividades e matéria, o não acontecido põe em evidência à caoticidade latente das suspensões indeterminadas, irrealizáveis, talvez impossíveis. Ou seja, a expressão diz respeito à frequência “inaudível” do acontecimento. O plano do inacontecido é o fundo arbitrário do qual se alimentam “as mitologias, os símbolos, as fantasias, os sonhos, as alucinações” [9], que tal-qualmente à concepção de natureza presente na ontologia mobilística de Heráclito (κόσμος, λόγος), ou ao infinito não criado e eterno da física anaxagórica (ἄπειρον, ἀόριστον)[10], não fora criado por nenhum deus ou homem, antepondo-se-lhes e se lhes pospondo.[11]


No acontecer, diz-se inacontecido do espaço de convivência entre diferentes graus de obliquidade, no qual rivalizam oposições intrincadas, que às vezes se atualizam na forma de alguma oposição lógica; de contradições autofágicas, que podem se reconciliar na efemeridade de uma síntese concreta; de antíteses radicais, provavelmente insolúveis no tártaro do intransitismo, mas que podem ressurgir no mundo no interior de uma aquiescência harmônica, ou, então, como parte de uma desarmonia ainda pior.


Suspensão onde as dicotomias são desmembradas, trata-se do fundo indistinto que não consegue artrelar singularidades, na ausência do princípio de identidade; devido à inexistência do princípio de não contradição, confunde os códigos, permuta-os entre si sem método; e os significados, se ali houvesse, estariam condenados à oscilação intolerável de sua polissemia. Noutras palavras, o não acontecido, no acontecer, reconduz-nos ao simulacro das rarefações (μάνωσις, ἀραίωδις), dos relaxamentos (χαλαρόν), dos condensamentos (πύχνωσις) e das contrações (συστέλλεσθαι) de um movimento anaximeniano – latente - sem princípio nem fim.


Em suma, esse vórtice de pura incompletude (a força agente, que encontramos na voz ativa de φύω simboliza a inexistência da noção de presença. Metaforicamente, pode-se dizer que ele ostenta, em seu lugar, uma profusão de “vozes” anônimas e antinômicas, que se norteiam por orientações simultâneas e arbitrárias[12]. Essas orientações persuasivas instauram a ilusão de que podem criar campos plurais de efetividade, facto que não procede, pois tais inconsistências estabelecem séries exaustivas, “afirmações e negações simultâneas, invalidadas à medida que se formulam”,[13] capazes de eliminar, um a um, os mundos possíveis, exatamente no mesmo instante em que os cria. Por isso, o não acontecido é um reservatório hiperbólico de potências que, em sua maioria, jamais poderão alcançar o estado pleno de uma mundificação.



1.3 A Incomensurabilidade


Sem se atualizar, o predomínio de potências irrealizadas faz do inacontecido um excesso inimaginável de possibilidades de vir a ser; comparado à lacuna imanente, o acontecido é um ínfimo grão de areia no deserto.


A forma hesitante com que o discurso primogênito reconta o evento oferece-nos prova inconcussa de tal incomensurabilidade. Através dele vislumbramos a criatividade da linguagem para representar, por intermédio de seu volumoso aparato signalético, composto por formas e categorias estruturantes, o acontecido que invade os sentidos, e a estrondosa limitação desse mesmo tautócrono estável de regras para conceber o que se passa no não acontecido, atrofiado pela superabundância de potenciais inatualizados, perdidos para sempre, ou à espera de alguma alomorfia casual, incerta.


Entretanto, o mais importante nesta primeira parte de nossa argumentação é perceber que, no acontecer pré-metafísico, além da suposta amplitude quantitativo-qualitativa do inacontecido, não há compenetração irrestrita entre acontecido e não acontecido, mas apenas uma coexistência rarefeita, distante. O primeiro tece o mundo aos alaridos; o segundo consuma-se em silêncio, recolhido em sua notte fonda. E a razão dessa ausência de intimidade entre pai e filho repousa na diferença de natureza que os cinde. Tal qual organismos autopoiéticos, vivem separados por uma fronteira sutil, muito embora o transitivo seja de alguma maneira “externação criativa” e “retorno destrutivo” das acumulações virtuais do próprio inatual (κύκλος: ciclo). [14]



2. O Acontecimento Pós-Metafísico


“Aber die Gesamtheit dessen, was existiert, mit Einschluβ dessen, was existiert hat und existieren wird, ist unendlich klein im Vergleich mit der Gesamtheit der Erkenntnisgegenstände”[15]



Malgrado sua inconteste capacidade de declamar os versos trágicos da existência, a intuição pré-metafísica dos eventos não resistira, por longo tempo, ao processo de logocentrização da cultura heleno-hespérica. Como é sabido, os regimes de pensamento mais expressivos de nosso itinerário histórico-cognitivo não se deram no âmago da reflexão pré-platônica, mas sim, em sua erosão pós-socrática. Com efeito, na maior parte do entendimento ocidental, o evento fora predominantemente concebido no interior de paradigmas metafísicos.


Foi o período em que estivemos absortos pelo domínio transitivo, ocupados em dissecar teoreticamente a “externação criativa” do ciclo cosmológico.[16] A preocupação com a desmedida (ὕϐρις) saiu de moda; afastamo-la de sua imanenticidade, perigosa e absurda. Por diferentes veredas, evitamo-la, vaporizando-a em transcendência nas metanarrativas onto-teológicas do medievo; enigmatizado-a na forma de noúmenon intangível na subjetividade romântica; ou, ainda, higienizando seu fundo, anômalo e contraditório, nos idealismos modernos (pós-kantianos).


O acontecimento, portanto, suposto no modelo metafísico, reduzira a totalidade do acontecer à sua dimensão atual, maniatando-a a escuridão das luminosidades. A linha límitrofe que cindia o evento em duas naturezas “orgânicas” e, simultaneamente, “desconformes” passa a ser, pois, na leitura metafísica, o ádito que, ao invés de cooptar, ofusca a gramática virtual do inacontecido.


Todavia, no contemporâneo[17], época das leituras pós-metafísicas do evento houve uma ruptura da “barreira” que distanciava, no acontecer pré-metafisico, e desligava, no acontecer metafísico, os planos transitivo e intransitivo, e que os impedia de coexistir integralmente na instantaneidade anfibológica do acontecer. Livre da barreira que primeiro a segregou, e que depois a anulou em relação ao plano transitivo, a ὕϐρις retorna a casa com novas vestes, alastrando-se com a força de uma epidemia viral. Na conjuntura vigente, as diferentes modalidades ontológicas do inatual mesclam-se, sem prurido, à transitividade temporalizada do acontecido.


Desse modo, a dissolução pós-metafísica do limite multivérsico no evento faz irromper um novo cenário, abalizado pela excentricidade. Nele aprendemos que apesar de não se poder pensar satisfatoriamente o impensável, ou, no limite, de não se poder pensá-lo literalmente, pode-se pensar que não é impossível que haja o impensável. [18]


Maurice Blanchot compreendeu com sofisticação esse cenário conceitual indisciplinado, surgido de rachaduras e auto-extravasamentos. Costumava salientar que nos eventos concorrem sempre duas dimensões inseparáveis: o plano dos processos que transitam do abstrato ao concreto, do indeterminado ao determinado, adquirindo corpo e visibilidade à luz do dia, e o plano das coisas que permanecem em abstrato, na invisibilidade sem rosto, ainda desintegrada, continuando a viver sem existir, no mundo, com identidade.


Contudo, embora emulem num mesmo intervalo como períodos paralelos, com ontologias próprias, conforme insinua a provocação blanchotiana, nem tudo que permanece em abstrato tem precedência ontológica que consiga imunizá-lo do que se atualizou, assim como não há pensamento mudo que venha antes da palavra que o pronuncia. Em consequência, o atual não representa o simples transitar do virtualismo desfigurado ao desnível sensível do figurado, da mesma maneira que o dito não representa a mera transição de pensamentos que não falam, de estados pensados em silêncio, aos dizeres que tagarelam por eles (estados pensados em voz alta).[19] A heterogeneidade do mundo real participa na constituição dos universos alternativos tanto quanto o dizer atua como fonte atual que constrói dialogicamente o pensar.


Porém, de igual modo, o acontecido não participa exatamente de toda “inaconteticidade”; o não factual não é mero neologismo da facticidade, da mesma forma que o dito nunca foi e nunca será a formulação precisa e exaustiva do que se é capaz de pensar, tese negativa que, se contrariada, nos induz ao raciocínio falacioso que associa a latência dos potenciais ao nada de potência, o não dito ao não pensado. Relação simplista entre ser o inatual e o ser atual, entre o silêncio e a fala, que predica: todo pensamento deve vir à fala, e toda não fala deve apontar a ausência de pensamento, como se tudo o que não é dito correspondesse, não a uma frequência inaudível, mas a simples carência de pensamento. Longe disso, o silêncio é, antes, o indicativo de que “existem” pensamentos que não podem ser ditos, pulsões que não podem ser externadas, mas que, apesar disso, têm estatuto, são objetos de representação.


Portanto, a ausência não tem sua constituição abaixo de si, na escala da presença, como o pensar não tem o seu ser fora de si, no falar; como se costuma dizer, uma obra nunca é totalmente impensada antes de ser escrita. Mas também é verídico que ausências não são factíveis sem presenças, bem como pensamentos sem voz não são plenos de si; as obras nunca estão totalmente pensadas antes de ser escritas.



2.1 Da Formação Endógena à Formação Exógena do Sentido no Mundo Pós-Crítico [20]


Intensus arcus nimium facile rumpitur [21]



A perda de um divortium aquarum inteligível entre os domínios do acontecer (o versus a meio-termo de acontecido e inacontecido) inscreveu toda sorte de contrassensos no sujeito hodierno. Além disso, como se não bastasse, conferiu mutabilidade profusa aos conceitos de identidade, orgânicos a esse sujeito, e, de maneira incisiva, ainda impôs uma situação insustentável de instabilidade à operação de construção de sentido dominante.


A circulação das incoerências onto-lógicas - antes restritas ao locus primeiramente remoto e posteriormente anulado do inatual - acarretou transformações drásticas nos muitos quinhões da existência objetiva, intra e intersubjetiva. Nomeadamente, a eclosão do evento pós-metafísico provocou mudanças irreversíveis no esquema abrangente - na fôrma - que até então utilizávamos para compor sentido no Ocidente, inaugurando uma nova versão de sentido tanto quanto inéditas variantes de ipseidade.


Por detrás de sua aparentemente inapreensível pluralidade perspectiva, alimentando-a, passou a fervilhar, no cenário pós-metafísico, uma construção social de sentido maculada pela gigantesca fragmentação interpretativa e, sobretudo, pelo culto irrestrito, quase teologal, à incoerência. Capaz de gerar uma des-identidade oscilante, essa construção de sentido é caracterizada, em grandes termos, pela escassez de alicerces compreensívo-explicativos fiáveis, mas igualmente pela multiplicidade de preceitos norteadores que não alcança a universalidade da regra bem-proporcionada e pelo reconhecimento público que não conduz à aceitação das desigualdades movíveis, solidificadoras e dissolutoras das hierarquias de ser e poder.


Com efeito, para compreedermos, no décor pós-crítico, o desfacelamento estrutural do sujeito metafísico e de sua identidade definida, é imprescindível esclarecermos essa formulação de sentido, por ora dita contrassensual, implantada pelo choque entre inatualidades e atualidades no cenário insurreto do evento pós-metafísico, assim como a identidade desconexa a partir daí instalada, cuja distorção confere imagem mínima às dinâmicas confusas que tipificam essa formulação. A chave hermenêutica para esse esclarecimento de origem, por sua vez, inicia seu trabalho ao propor que entendamos o sentido contrassensual como desconstrução do que alcunharemos formação endógena do sentido.



2.1.1 A Formação Endógena do Sentido


Per noi che abbiamo portato alle estreme conseguenze la concezione del “pensare” come uni-ficare creata dai filosofi greci (...)[22]



Todos generalizar é uma manobra reducionista na medida em que, para definir dedutivamente, compara ímpares incomparáveis, visando assimilar os predicados comuns que os torna símiles; ao fazê-lo, a generalização acaba por simplificar as singularidades nesse comparar, calando as diferenças que as torna desiguais.


Entretanto, é igualmente verdade que, ao propor similitudes, e não igualdades, o raciocínio generalista desenterra, à revelia do formalismo dedutivo, que permeia sua operação lógica, preciosas semelhanças, que juntas nos levam ao íntimo de uma realidade. E o faz, não ao tentar defini-la (a realidade) através de universais abstratos, como essência anterior, ou Leitmotiv, como essência posterior, mas esclarecendo-a desde um esboço provisório que emerge do tumulto próprio das coisas.


Precisamente nesse sentido de estrutura emergente que sugerimos compreender, no presente empenho analítico, a formulação endógena, pensando-a como o grande esquema de sentido entranhado à metafísica não correlacional, e que dera substância à cultura pré-crítica como um todo. À contraluz do modelo pós-crítico, a construção endógena arquiteta um tipo de identidade - não em senso psicológico ou cronológico, mas em contexto sócio-epistêmico - cuidadosamente assente e fiel a si mesma. Quer dizer, uma identidade preparada para saber aproximadamente aquilo que ela é e, com igual energia, reagindo ao temor da desaparição ou da autorrefutação, predisposta ao bom combate para manter-se nisto que é (ou se tornou).[23] Noutros termos, a formação endógena compõe um sentido coerente, inventor de um ideal identitário adulto, autoconsciente e parenético.[24]


Selbst–Bewusstheit. Auto-conscienciosidade é a palavra de ordem para essa formulação. Ser adulto é saber ineptamente o que se é. Todavia, para saber o que se é, é preciso ser o que se é, pois o saber-de-si pressupõe circularmente a presença referencial de algum em-si para que haja, logicamente, um saber-de co-referencial. Mas, para ser em-si mesmo, correlato do relato saber-de, é mister, primeiramente, constituir a entidade do ser-si, que implica nalguma unidade estável de determinações e, não obstante, mediações regulares entre determinações. Em síntese, para formar a mesmidade (lat. idem) mais ou menos constante da entidade, ou seja, a idem-entidade, há de se silenciar, sem prurido, o que se é in loco. Isto significa que para produzir endogenicamente o sentido e sua identidade conexa, devemos legislar a caoticidade existencial, normalizando-a.


2.1.1.2 A Diacronia Têmporo-Espacial e as Modalidades Ontológicas Alternativas


Para constuir de modo endógeno o sentido, foi preciso adestrar, metodologicamente, na história pré-crítica, a caoticidade reinante na antropologia e na mundanidade que a circunda. O problema é que a indivisão pós-metafísica fez germinar um estado de coisas insólito, demasiado babélico, e sem a mínima disposição para se deixar silenciar em sua verdade.


Essa (hiper)caoticidade, de que falamos, é a tensão entre o excesso virtual trazido à superfície do acontecido, que ultrapassa, sem pudor, o processo de diacronia têmporo-espacial, e a sincronia espaço-temporal, resultado desse impacto, instaurada junto ao despontar dos eventos pós-críticos.


A [dia (διά: através de) - cronia (χρόνος: tempo)] têmporo-espacial é a temporalização do inacontecido, isto é, o processo de aquisição de determinações/predicados/qualidades através de um tempo desarmônico. Tal regime de aquisição de determinações, ou, caso queiramos, de finitização das virtualidades é parcial, e dá-se apenas com parte das inatualidades, a saber, as virtualidades finitizáveis, que são as potências que se atualizarão. Destino outro se reserva as virtualidades não finitizáveis, ou excesso potencial que não se atualizará. Este se subdivide, em seu ultrapassar, entre o que se extingue no ínfimo de um evento a outro, e o que se transforma nesse ínterim infinitesimal.


Entretanto, o que importa notar é que as virtualidades não finitizáveis, em seu resistir à metamorfose têmporo-diacrônica, formam lapsos que intitularemos “ausências significativas”. Significativas, pois, muito embora não resguardem qualquer tipo de existência concreta, de classe de realidade[25], essas ausências não expressam simplesmente a pura privação de determinações, o absentismo radical de qualidades, o não ser (Nichtsein) ou o nada puro (blosses Nichts). Ao contrário, elas abrigam simulacros recheados de implausibilidades, se cotejados ao real-ôntico, nos quais trafegam objetos com outras modalidades ontológicas que não podemos encontrar em nenhum dos reinos do ser (existência).


As ausências significativas resguardam classes de realidade que não são coextensivas à realidade existente; não nos esqueçamos de que a existência, o acontecido, é um tipo de realidade. Nesse sentido é que Meinong sustenta, em sua teoria dos objetos (Gegenstandstheorie), que tais irrealidades, ou inatualidades, em nosso léxico, à partida independem da existência ou da não existência de sua condição ontológica (a tese da autonomia do Sosein, ser-tal, em relação ao Sein, ser). Afinal, há coisas que não existem, não possuem qualquer rastro de onticidade, mas que têm propriedades e, especialmente, estatuto ontológico.


O ser utópico de um círculo quadrado, ou, então, de um fogo gelado (oxímoro) não tem relação com a condição paradoxal de o primeiro ser, num só tempo, circularidade e quadratura, e de o segundo ser, em igual passo, quente e frio. Tanto o ser-tal de um quanto o ser-tal do outro pertence a uma classe de realidade chamada “impossibilidade” (são Gegebenheit: ser-dado, modo mínimo de ser dos objetos impossíveis); ambos são objetos impossíveis, não por não serem possíveis na modalidade existência, em razão de seu antagonismo contrangedor, ou em qualquer outra modalidade ontológica, mas porque a própria impossibilidade é um estatuto ontológico diferente de outros modos de ser como a existência (Existenz: o fogo, o frio) e, no limite, a subsistência (Bestand: o quadrado, o círculo, que inexistem, mas apenas subsistem como os demais objetos da matemática), como propõe o raciocínio meinonguiano.[26] Para este, a representação – relação entre um conteúdo noemático-linguístico e um objeto-referente – é sempre representação de algo, mesmo que esse algo seja tão somente um quase algo.



2.1.1.3 A Sincronia Espaço-Temporal e a Normalização da Caoticidade


Quando a sinopse inatual, esse excesso de quase coisas, que ultrapassa o processo de finitização das virtualidades, se junta às dinâmicas atualizadas da própria diacronia têmporo-espacial, vemos eclodir, então, um espaço fraturado, atravessado por presenças e ausências significativas de todos os lados.


A esse ca-osmos posterius - o cosmos instável formado por um caos de atualidades e inatualidades ao mesmo tempo, no qual pulula toda espécie de objetos ideais, antinômicos, factualmente não comparentes, liames subsistentes, energias passadas e futuridades que escapam ao presente, ao lado de objetos, interpretações e perspectivas acontecidas – nomeamos sincronia espaço-temporal.


A [syn (συν: junto; com) – cronia (χρόνος: tempo)] espaço-temporal designa, em nosso entender, a mais exata expressão da sociosfera e do indivíduo contemporâneo. O hipercaos síncrono, forma sublimada e negada do inacontecido pré-socrático, tem uma influência tão decisiva sobre a constituição de nossas antropologias, que não seria demasiado propô-la como o que subjaz e suporta as gradações do sentir, pensar e agir humanos na realidade pós-crítica.


Assim como fez com a caoticidade pré-crítica, a formação endógena deveria trabalhar na criação de um sentido capaz de orientar as determinações alienadas da hipercaoticidade instalada a focos de proporção, convertendo sua dissipação em unidade coesa, propondo concordância às suas mediações, distribuídas conforme algum tipo de sequência lógica e compatível. Todavia, como foi sugerido, a ambivalência e a oscilação da hipercaoticidade, produto da eclosão do evento pós-metafísico, bloqueiam toda concepção coerente de sentido. Limitada, a formação endógena apenas consegue parametrizar o contexto histórico-semântico anterior ao caosmos síncrono.


O escalonamento do diácrono têmporo-espacial é um esquema de sentido promotor de convergência e coerência generalizada. Para operar, o esquema convergente-coerente imprescinde de um diagrama que conceba órbitas de retorno corretivo, que coaja as dimensões da senciência (capacidade de sentir), ciência (capacidade de pensar) e agência (capacidade de agir) dos homens, em trajetórias dispersas, em meio ao caos que nutre suas naturezas, a centralizar-se como se fossem circunferências con-cêntricas. [27]


Convertidas em circunferências coercitivas, as órbitas dispersas são obrigadas a redirecionar suas trajetórias, sem padrão de eurritmia, como se coagidas por forças newtonianas de categoria centrípeta. Esse redirecionamento vetorial centrípeto faz com que suas vibrações, correspondentes às gradações da percepção, cognição e ação sejam aceleradas “para dentro” e, com efeito, orbitem ao redor de “centros presentes”, aperceptivos.


Em geometria euclidiana, centro é o ponto que está a igual distância de todas as extremidades; os demais pontos, marginais, movimentam-se, isto é, irradiam ou convergem, conforme se afastam ou se aproximam dele. Ou seja, o centro é a referência suma, o ponto que confere coordenada à posição e concatena o curso de cada ponto em relação aos outros pontos, para juntos formarem um sistema inteligível de pontos – formalizados (entidade), unificados (unidade) e identificados (identidade).


Agindo como se fosse um “centro” coordenador e concatenador de inconstâncias - que as faz convergirem (eis o senso do prefixo endo) para formar identidades conexas, compostas por estruturas estáveis, abrangentes e consistentes -, o sentido endógeno pode ser definido, não enquanto resultado ou consequência, mas como a própria operação de normalização de toda imanência naturalmente não normalizada.



2.1.2 A Formação Exógena do Sentido


(...) la folie, c'est la perte du mond et de soi-même au titre d'une connaissance sans commencement ni fin [28]



A formação exógena é uma construção incoerente de sentido, reflexo condicionado de uma identidade coletiva pubescente. Se na identidade madura, resultante de uma semântica coerente, chegamos a saber o que somos, e tememos perder, ao mesmo tempo, este algo que nos tornamos, na identidade pubescente, como se não bastasse desconhecer o que se é, ainda por cima teme-se não vir a ser aquilo que se sonha.[29] Trata-se, portanto, de uma des-identidade que se constituí na indecisão perpétua entre a “dúvida de ser” e o “desejo de ser”, ou seja, na disputa telúrica entre o necessário e o impossível.


Desassociando o conceito de sentido (coerente-convergente) do de identidade (conexa), a formação exógena, por sua vez, ao invés de corrigir a realidade pós-crítica, como faz o sentido endógeno, constrói seu sentido bloqueando a formulação endógena ao aderir incondicionalmente à antilógica do hipercaos.


Opera com um diagrama contrário ao anterior. Ao invés de produzir “órbitas de retorno corretivas, cria rotas de fuga dispersoras, que liberam os graus de senciência, ciência e agência para que prossigam suas rotas como se fossem circunferências ex-cêntricas e desconectadas. Atuando como forças centrífugas, essas circunferências fazem com que os mesmos movimentos das órbitas, antes centralizados à força pelo redemoinho aperceptivo, irradiem para zonas incongruentes, acentuadas pela carência de limites e centros de significação unívoca. Essas externalidades semânticas, sem morfologia definida, são plurívocas e correspondem às intersecções nas quais rivalizam, aleatoriamente, toda sorte de discursos, perspectivas e interpretações que tonificam o mundo real”. [30]


Formação exógena é um cômputo que expressa, consequentemente, o alcance limítrofe da liberdade das experiências-limite e do culto pós-estruturalista à noção de exterior (exo: a entificação do “fora”). Rompidos os algorítimos de equalização, o sentido exógeno oferece o narcótico alucinógeno de que precisa o humano, e também sua sociosfera, para poder alfim vivenciar o que são in loco, a saber, “miscigenações trágicas”, cuja ipseidade distorcida é confeccionada, fração por fração, com peças de sentido híbridas. Tal geografia de esquemas de sentido, desproporcionais entre si, constitui um mapa identitário impreciso, composto por peças jungidas, sem encaixe preciso. Em substituição à unidade de apercepção, que unificaria as diferentes propostas de sentido, a desidentidade exógena possui como fulcro um “centro ausente”, que faz tremular, alhures, “as plurirreferencialidades marginais que não se reconciliam na norma norteadora; as reflexividades que não alcançam à completude da identidade definida; e os reconhecimentos que não conduzem à síntese vertical das dissimetrias sociológicas”. [31]


A formação divergente tonifica as différences qualitatives. Ela constrói seu sentido de modo contingente, deixando-se lacerar pelas dissimetrias temporais da sociabilidade urbana, sempre ameaçado pelos espaços federalistas, preenchidos pelas tribos idiossincráticas da sociedade civil, com legislação, formas de rotina e organização intelectiva própria.


Observada retroativamente, a obstrução dos esquemas coerente-convergentes, que dantes proporcionava um identitário social relativamente coeso, acarretou a expansão incontrolável das idealizações incoerentes de sentido, de suas bizarras mutações fenotípicas, de seus meios de persuasão, fazendo do contemporâneo um gigantesco “Leviatã” de identidades desconexas. [32]



3. Do Sujeito de Cultura ao Corpo Subculturado


Deitei sobre ela na sombra, seus olhos se abriram e eu entrei (…). Jamais conheci silêncio tão grande. É como se a terra estivesse desabitada[33]



Ressoando pela noite da história ocidental ao menos desde a instauração do evento pré-metafísico, e com desfecho no século XX, a obstrução negativa da formação endógena (coerente-convergente), por via da ascensão positiva da formação exógena do sentido (incoerente-divergente), contém um significado mais primacial. Na Modernidade, essa obstrução tramou a morte do sujeito de cultura, e, além disso, está por detrás da crise de suas principais instituições. Ela é a completação do ciclo autofágico de formação deformativa da consciência moderna.


Entendamos melhor esse pormenor.


Consciência e, sobretudo, consciência moderna são conceitos demasiado complicados. Aqui devemos entendê-los de modo genérico, ou seja, devemos compreender que a locução “consciência moderna” denota a totalidade dos regimes formais de pensamento, que construíram, na Modernidade, a inteligibilidade segundo modelos preeminentemente substancialistas, gnosiológicos e reflexivos.


A consciência moderna, por sua vez, forjou o sujeito de cultura. E o fez por meio de três manobras básicas, resumidas com franqueza despudorada nos fragmentos póstumos de Nietzsche. Por um lado, fê-lo erigindo alicerces para referenciar suas operações; por outro, disponibilizando respostas, mesmo que incompletas, às suas indagações sepulcrais; e ainda, promovendo a opulência hermenêutica impreterível para o surgimento de valores integrativos, após cada transvaloração de juízos e critérios de avaliação.


A indivisão pós-metafísica, que implanta o sincronismo espaço-temporal, corresponde à identidade púbere da consciência. Ao adentrar nesse período niilista de seu itinerário, a consciência constitui-se se desertando de si mesma. Negando-se. Insatisfeita ao não se saber ao certo, duvida de si, desconstruindo os predicados que compõem sua própria identidade, e os sentidos que ela havia integrado à identidade do sujeito, ao mesmo tempo em que cria – ansiosa - infinitos outros predicados, e sentidos para solidificar o subjetivo, na tentativa de eliminar cada possibilidade de não se tornar o que aspira ser.


Açulada por essa angústia dimanante, que trinca seus ossos, a consciência moderna passa, então, a substanciar-se, exaurindo os fundamentos que outrora havia edificado no mesmo movimento em que elucubra novos escopos, incapazes de atuar como sólida referência. Com igual vigor, faz-se volatilizando as soluções às suas indagações capitais, suspendendo suas frágeis respostas; e, como se não bastasse, das metamorfoses transvalorativas já não rompem mais novas entidades (excetuando a “relação”), categorias e valores positivos, capazes de fornecer correlatos consistentes às tessituras discursivas, reconciliar os produtos da reflexividade humana e sintetizar as alternâncias em padrões de normalidade onírica, intelectual e comportamental. No presente, desprovidos de perspectivas futuras, conclusões críveis e critérios végetos, resta-nos vagar em um mundo horizontalizado, onde coisa alguma alcança a compleição de ser.


Mas o que significa inalcançar o ser? Significa constituir-se sem traços semânticos estáveis. O triunfo obstrutivo da formulação exógena do sentido dilapidou, um a um, os predicados seculares do sujeito de cultura. Paradoxalmente, ao invés de enriquecê-lo, com tamanha disponibilidade de variações, a insistência nessas variações empobreceu sua constituição até o nível do corpo biológico infra ou subculturado. O ciclo autofágico da consciência moderna é apenas a manifestação epidérmica do alegado triunfo.


No contexto, a palavra cultura condensa as inumeráveis ficções, inventadas pelo homem, para manter-se com estabilidade no viver; defronte ao devenir inconstante, fortalecemos a harmonia psíquica e desenvolvemos a continuidade social mediante decisões viabilizadoras e convenções integrativas. Mais analiticamente, cultura nomeia os macro (ciência, religião, filosofia, etc.) e micro (condições de possibilidade, cômputos explicativos, modelos comunicativos) esquemas signaléticos[34], por meio dos quais interpretamos e atribuímos sentido (moral, histórico, científico, etc.) aos diferentes planos da vida (egóico, social, intelectivo, etc.).


Definido alegoricamente, sujeito de cultura é o translado da natureza despersonificada, destituída de símbolos, ao organismo investido artificialmente. Quer dizer, um corpo que substancia sua identidade anexando cultura a si, isto é, “impregnando-se de pontos de vista, inserindo-se em redes explicativas e inventando modelos comunicativos” [35]. A transição do sujeito litúrgico ao corpo desritualizado, da cultura civil à anatomia desumana ocorre porque a consciência, que noutrora aculturara o corpo, embutindo-lhe com séries de sentidos coerentes, agora o desacultura em vista de seu próprio desamparo, no caosmos indiviso, defronte ao esfacelamento orquestrado por classes de realidade oblíquas e polissemias inconciliáveis.


O desmonte crítico das economias epistêmicas, acumuladas na consciência moderna, que compunham, como predicados acidentais, o sujeito de cultura, exauriu-lhe ao limite dele só restar atributos fisiológicos. De seus olhos, que são ângulos nocionais, de seus órgãos, que são interpretações, e de sua boca, pura articulação de linguagem, parece-nos haver restado apenas o suporte biológico, que o envolvia como invólucro. [36]


No final da Modernidade autodestrutiva, portanto, eis que vem à tona o translado do artefato à natureza quase nula de sentido. O corpo subculturado.



3.1 O Grau Ontogenético Primitivo


Em todo o século XX, o dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett foi o que melhor traduziu (e prolongou) a liquidação do sujeito de cultura. Em meio ao longo inverno, sem perspectiva de primavera, deixado pela falência irreversível dos sistemas de entendimento construídos pelo sujeito moderno, Beckett havia compreendido que a voracidade interpretante do homem, aliada à sua natureza (auto)aniquilante, apenas poderiam conduzir os indivíduos à constatação de sua própria incapacidade de gerar inteligibilidade. Sua suprema intuição foi ter percebido que, em sua busca indomável por sentido, o homem havia se desabitado de si, desterritorializando-se.


A nosso ver, ao desnudar os diferentes átimos do narrado retorno da cultura subjetivo-reflexiva à natureza anônima, a “ontologia” beckettiana, dita de deformação do ser, faz do esvaziamento do sujeito de cultura seu grande objeto implícito. Defronte ao espelho de si mesmos e imersos na solidão dos infinitos de Pascal, os personagens mórbidos de Beckett, anatomias infraculturadas, assistem de perto ao espetáculo vagaroso de seu próprio apagamento no presente. Em termos, recordam aquele infortunado réu do início de Vigiar e Punir[37], que testemunha, enquanto lhe resta discernimento, as meticulosidades de seu próprio esquartejamento. [38]


Cada protagonista (e entrecho cênico) é na realidade uma dinâmica incessante de perda de qualidades somatótipas, de camadas da personalidade e de predicados existenciais. Obedecendo a um tempo gradativo e a uma ordem simultânea, a subtração quantitativa de predicados impõe uma transição qualitativa de cenários. Com efeito, de uma situação de pobreza parcial, progride-se, a passo e passo, para um estado de miséria absoluta.


O grau ontogenético primitivo – tal como nomeia Adorno essa condição de indigência limítrofe[39] - é um ponto de inflexão. Trata-se do momento aporético do processo de liquidação do sujeito de cultura, analisado até aqui, no qual a consciência certifica-se de sua real natureza anticíclica (imobilista) e antiplural (única). Isto ocorre quando a consciência não mais suspeita racionalmente, mas tem plena certeza do vazio e da arbitrariedade visceral que sempre habitara o cerne da aparente plasticidade camaleônica do sentido, ora realizado de forma sensata (endógeno), ora de forma insensata (exógeno).


Contudo, há um longo calvário até o ponto de inflexão, onde se descobre monomorfo inativo o que se pensava atividade polimórfica. Para granjeá-lo, é mister erradicar as matrizes coerente e incoerente. Assim sendo, visando consumá-las, Beckett dá vida ao esgotamento do sujeito que as havia anexado para arquitetar sua identidade. Desencadeia-se, então, a decomposição paulatina do sentido.


Essa decomposição de que falamos é, pari passu, anedótica e cruel. Os mancos passam a arrastar-se pelas estradas desertas, a miopia torna-se cegueira irreversível (penúria física); os nomes e filiações são esquecidos, confundidos, a memória extingue-se como a ponta de um lápis (penúria mnemônica)[40]; em silogismos confusos, as conclusões não têm premissas, suas relações são coerentes somente em aparência (penúria cognitiva)[41]; povoam as narrativas tipos decrépitos, surdos, caducas semienterradas, paralíticos em latas de lixo, estúpidos com cabeças enfiadas em cântaros (penúria estética); massacrados pela falta de senso existencial e feedback dialógico, os personagens, naturalmente promíscuos, cometem atos de crueldade gratuita (penúria ético-moral)[42]; as tramas são perpassadas no interior de uma gramática minimalista de desrelação, na qual os predicados eliminam os núcleos de sujeito, e as orações subordinadas já não se concatenam ao conteúdo lógico dos períodos principais (penúria linguística). A identidade, débil e quase inexistente no início das tramas, caminha indiferente para o fim, mais parecendo um rigoroso ipsis litteris daquele sábio adágio atribuído a Sêneca, segundo o qual o crescimento é lento, mas a ruina é rápida.


Depois de suprimidos os predicados adstritos à identidade do sujeito, regressa-se ao tempo primitivo, que não diz respeito à anterioridade dos ponteiros de um relógio. Nele não há o antes e o depois, mas algo como o sempre foi (pensemos na ausência de duração dos verbos em aoristo no sânscrito e no grego antigo). O tempo primitivo registra a atemporalidade, no sentido de indeterminação, que subjaz à temporalidade; é uma ressonância épica, que anuncia, em voz baixa, nossa disposição existencial única: a nulidade que comunica nada, porque nem o nada o é.


Essa disposição única reflete como que o “corpo sem órgãos” (Artaud) dos personagens e cenários, que não passam de ficções mal concatenadas, dadaisticamente esculpidas com resíduos de linguagem. Por esse motivo é que o onanismo de Molloy e Malone, “protagonistas” dos dois primeiros romances da trilogia pós-guerra, não tem desígnio libidinoso; é por isso que o pranto de O Inominável, no último romance da mesma trilogia, é desprovido de intencionalidade; e é por essa razão que os raros nomes se confundem, e os horizontes naturais somem e reaparecem ao capricho do autor. Eram dejetos culturais remendados, todos remanescentes de uma civilização em rota de colisão com suas próprias inconsistências.


Desse modo, a tragicomédia beckettiana, rebôo lúcido dos efeitos mais violentos da indivisão pós-metafísica, retratada rigorosamente o ultimar do ciclo de esvaziamento do sujeito de cultura, compreendido em dois momentos cruciais, seus esconderijos. Em um primeiro momento, contrai-se o real, reduzindo-o à ficção linguística de quinta categoria; em momento posterior, tentasse refutar a própria linguagem, útero do sentido. Em Beckett, cremos que os respectivos momentos se encontram patenteados, mormente, em uma espécie de “gramática” minimalista, cuja função principal é denegar a capacidade elíptica da linguagem. Não há contexto linguístico ou conjuntura pragmática que faça subentender um termo que por acaso seja suprimido; os termos não estão amarrados à redes lógicas, e não se referem à pressupostos mais essenciais, sejam eles reais ou abstratos. Os vocábulos e orações são estilhaços inventados, que não se referem a coisa alguma.


Além do mais, a prosa beckettiana não possui subjacência morfo-semasiológica que proporcione consurabilidade semântica. Cito o clássico exemplo de Fim de Partida [43]. Nesta encenação terrificante, Hamm, artista fracassado, cego e paralítico, Nagg e Nell, seres mutilados, e Clov, criado de Hamm, portador de uma patologia que o impede de sentar, não se comunicam realmente entre si. Para comunicar-se, seria preciso que se fizessem entender, traduzindo o dito num léxico partilhado.[44] Isto é, para que os personagens se comuniquem, o conteúdo da fala de cada colocutor, intransponível a priori, deve ser decomposto, para em seguida ser recomposto com os termos de um mínimo linguístico partilhado, disponível aos interlocutores. Mas Hamm, Nagg, Nell e Clov são mônadas no fundo incomunicáveis, pois não possuem a portata di mano universais primitivos comuns, que permitam, através da decodificação, a tradução de mensagens, à partida criptografadas, no interior de uma língua acessível. Pois:


Cada frase pronunciada nega o sujeito que predica o verbo, a conjunção aditiva não une mais dois períodos oracionais. O ato locucionado comunica a impossibilidade de comunicar. Na fonética não há especificidade que diferencie os sons; no campo fonológico não existem sonoridades sintetizadas em padrões; na morfologia as palavras não têm estrutura interna; na sintaxe os elementos oracionais não conseguem combinar-se para formar períodos complexos; na estilística os gêneros mesclam-se para fazer vagir o anônimo sem estilo; na pragmática as ressonâncias perlocucionária destroem os atos locucionários; não há lembrança para haver filologia. [45]



Sem lógica, sem fonética, sem morfologia, sem sintaxe e sem gênero conscientizamo-nos de que as vozes dos personagens não passam de ecos de uma única voz. Ecos de uma voz anônima e cínica, pois o que temos ali, na melhor das hipóteses, é puro jogo de linguagem e, no mais honesto dos cenários, nem isso. Afinal, como hão de afirmar que são ilusões de realidade se não conhecem outra realidade que não a da ilusão em que estão imersos? E será que conhecem mesmo a “realidade” da ilusão? Se sim, de onde é que falam essas pobres criaturas, para assegurar-nos que a conhecem?


Os personagens beckettianos são no fundo um só: a condição humana novecentista, produto do desnudamento do mundo ocidental. São rumores do “centro ausente” que oscila entre a necessidade de ficções significativas sem-fim, que conduz paradoxalmente à eliminação de todo sentido (grau ontogenético primitivo), e a impossibilidade derradeira dessas ficções, que desemboca na imorredoura suspeita de si mesmo (aporia da autorreferencialidade). Eles formam a figuração do talvez.



§



Obs: Trecho extraído de capítulo de livro sobre "cuidados paliativos" que será publicado em breve com alguns acréscimos e o título invertido.



NOTAS



[1] “Evento: é preciso entendê-lo não como uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se fragiliza, distende-se, envenena-se e uma outra que faz sua entrada, mascarada” (FOUCAULT, Michel. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In:______. Dits et écrits. II. Paris: Éditions Gallimard, 1994, p.75, tradução nossa).


[2] Desinências extraídas de MURACHCO, Henrique. Língua grega. Visão semântica, lógica, orgânica e funcional. Vol. 1. Teoria. São Paulo/Petrópolis: Vozes, 2007, p.341.


[3] Idem, p.356.


[4] FRAILE, Agustín Blánquez. Diccionario Latino-Español. 5. Ed. (K-Z). Barcelona: Editorial Ramón Sopena, S.A, 1975, Vol. II, p.1742.


[5] DELEUZE, Gilles. On Nietzsche and the image of thought. In: ______. Desert islands and other texts (1953-1974). Cambridge, Mass. and London: The MIT Press, 2002, pp.137-138.


[6] HANS, Jonas. Il concetto di Dio dopo Auschwitz. Una voce ebraica. Genova: Il Melangolo, 2004, p.30.


[7] DELEUZE, Gilles. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969, p.14.


[8] Sem querer eliminar o “caráter lacunoso” de todo dado, haja vista que em todo dado há o não dado.


[9] GALIMBERTI, Umberto. Cristianesimo. La religione dal cielo vuoto. Milano: Giangiacomo Feltrinelli Editor, 2012, p.16.


[10] ZELLER, Eduard. Compendio di storia della filosofia. Firenze, Vallecchi, 1921, p.54.


[11] “κόσμον (τόνδε), τὸν αὐτὸν ἁπάντων, οὔτε τις θεῶν, οὔτε ἀνθρώπων ἐποίησεν, ἀλλ' ἦν ἀεὶ καὶ ἔστιν καὶ ἔσται πῦρ ἀείζωον, ἁπτόμενον μέτρα καὶ ἀπο- σϐεννύμενον μέτρα”. “Este cosmos, o mesmo para todos, [que] nenhum dos deuses e nenhum dos homens fez, mas fora sempre, é e será fogo constantemente vivo, acendendo-se conforme medidas, e conforme medidas extinguindo-se” (Herakleitos B. FR. 30. In: DIELS, Hermann. Die Fragmente der Vorsokratiker. Griechisch und Deutsch. Berlin: Weidmannsche Buchhandlung, 1903, p.71, tradução nossa).


[12] “Voz” significando flatus vocis, expressão conceitual atribuída ao nominalista medieval Roscellino di Compiègne, superabundante nos textos do prosador irlandês Samuel Beckett. Flatus vocis (“emissão de voz”) diz respeito às formas discursivas inócuas, sem consistência e objetivo.


[13] HANSEN, J.A. Prefácio. In: BECKETT, Samuel. O Inominável. São Paulo: Ed. Globo, 2009, p.7-25.


[14] Conforme Nietzsche já vislumbrara em sua tese cosmológica de juventude (Die Geburt die Tragödie oder Griechentum und Pessimismus. In: NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke. Ed. G. Colli und M. Montinari. Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Berlin, New York, München, 1988), cuja ontologia negativa dá ser a cultura apolínea, religando-a à sua genética dionisíaca perdida.


[15] “Mas, a totalidade do que existe, incluindo o que já existiu e o que existirá, é infinitamente pequena em relação a totalidade dos objetos de conhecimento” (MEINONG, Alexius. Untersuchungen zur Gegenstandstheorie und Psychologie. Leipzig: Verlag von Johann Ambrosius Barth, 1904, p.5, tradução nossa).


[16] “L'histoire de la philosophie occidentale s'ouvre par un constat de deuil: la disparition des notions de hasard, de désordre, de chaos” (ROSSET, Clément. Logique du pire. Paris: PUF, 1971, p.9).


[17] Entendemos por “ambiência contemporânea” o cenário conceitual legado pelos regimes de pensamento que, do século XIX para cá, parcial ou totalmente, contrapuseram-se e/ou desconstruíram a metafísica greco-ocidental. Dentre esses poucos regimes, cito como exemplo, em especial, a fase madura do pensamento nietzschiano, as discussões do segundo Wittgenstein, a prosa e o teatro beckettiano e o estruturalismo/ pós-estruturalismo francês como um todo.


[18] MEILLASSOUX, Quentin. Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence. Paris: Éditions du Seuil, 2006, p. Fazemos aqui uma interpretação um pouco torta de Meillassoux, que atribui essa tese ao que ele intitula “correlacionalismo forte”. Para nós, o impensável designa as modalidades ontológicas não convencionais, enquanto que, para Meillassoux, o impensável refere-se muito mais à impossibilidade de afirmar o absoluto, mas igualmente à impossibilidade de refutá-lo.


[19] ROSSET, Clément. Lógica do pior. Trad. Fernando J. Fagundes Ribeiro e Ivana Bentes. Rio de Janeiro: Editora Espaço e Tempo, 1989, pp.35-36.


[20] “Pós-crítico” (ou correlacionista) no sentido de que não há dado sem o seu dar-se, ou seja, não podemos conhecer nada fora de nossa relação com o mundo (ser é ser um correlato), tendo como principais ambiências a consciência e a linguagem, que formam uma externalidade correlacional impossível de escapar: “Car nous sommes bien enfermés dans l’en-dehors du langage et de la conscience, puisque nous y sommes toujours-déjà (…) puisque nous ne disposons d’aucun point de vue d’où pourrions observer de l’extérieur ces ‘objets-mondes’, donateurs indépassables de toute extériorité” (MEILLASSOUX, Quentin. Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence. Paris: Éditions du Seuil, 2006, p.21).


[21] Adágio latino, atribuído ao poeta romano Publílio Siro: “Arco demasiado atesado, é arco rompido” (CAROLO, Zell (curante). Auctores classici latini ad optimorum librorum fidem editi. Stuttgartiae: Sumtibus Caroli Hoffmann, 1829, p.13, tradução nossa).


[22] “Para nós, que levamos às extremas consequências a concepção do ‘pensar’ como uni-ficar criada pelos filósofos gregos (…)” (REALE, Giovanni. Corpo, anima e salute. Il concetto di uomo da Omero a Platone. Milano: Raffaello Cortina Editore, 1999, p.18.).


[23] GALIMBERTI, Umberto. L'ospite inquietante: il nichilismo e i giovani. Milano: Giangiacomo Feltrinelli Editore, 2007, p. 31.


[24] O termo parenética, presentemente utilizado, foge completamente do seu sentido convencional. Originalmente substanciado nos círculos da moral estóica, tal termo designava o variado quadro de aconselhamentos práticos e ideais reguladores das ações, pensado sempre nos termos do exercício público da virtude. Daí o sentido da palavra ática παραινετικός, relativo a παραίνεσις (exortação; admoestação), de παραινεῖν, que significa exortar. Para que nos seja conveniente, “parenético”, no contexto acima, diz respeito aos meandros lingüísticos, retóricos e, sobretudo, estratégicos dos discursos, que foram (ou são) ensejados com a intenção fundamental de salvaguardar o seu aparato formal da refutação externa e, principalmente, da própria autorrefutação (Leve inspiração para tal leitura pode ser encontrada em: BRASSIER, Ray. Nihil Unbound. New York: Palgrave Macmillan, 2007, p.205-214).


[25] CHISHOLM, Roderick M. La Teoria del Objeto de Meinong. Revista de Filosofia de la Universidad de Costa Rica, São José da Costa Rica, julho-dezembro de 1958, v. 1 nº 4, p.339.


[26] Um exemplo de objetos cuja modalidade ontológica é a subsistência encontra-se na própria afirmação da veracidade do círculo quadrado. Quando digo que o “círculo quadrado não existe”, a asserção é verdadeira, não em virtude do “círculo quadrado”, que em si é impossível, mas em razão do “não ser do círculo quadrado”, que subsiste.


[27] CEVOLO, Vicente A. G. L. As sombras vazias. revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pouso Alegre, Volume 32, n° 1, jan./jun. 2016. No prelo. A idéia básica de dois tipos distintos de construção de sentido nasce aqui de algumas sugestões implícitas contidas em duas possíveis leituras da metáfora do eterno retorno nietzschiano. Para que o eterno retorno do mesmo (Wiederkehr des Selbigen) seja possível, é necessário um diagrama de significância que crie um círculo de retorno do devir con-centrado por (prep. que designa conformação) uma circunferência con-cêntrica a ele, que faça convergir todos os seus pontos para um “centro presente” que lhes confira sentido, item responsável pela existência (ipsem) e constância (idem) das entidades (idem-entidades). Isto gera um esquema de sentido convergente, que não apaga as diferenças qualitativas, reduzindo-as a diferenças em potência, mas as reúne numa identidade. Mas se tivermos não o retorno do mesmo, mas o do igual (Wiederkehr des Gleichen), como quer Nietzsche, então se faz imprescindível outra estrutura de significância, diversa da anterior. Afinal, para ser coerente com a mutabilidade do devir, onde nada alcança o estado de ser (de idem-entidade), o único que deve retornar é o próprio “retorno”, i.e, o regresso do fortuito e da casualidade, que desassocia o sentido da identidade.


[28] “(…) loucura é a perda do mundo e de si mesmo sob a forma de um conhecimento sem começo nem fim” (DELEUZE, Gilles. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969, p.350, tradução nossa).


[29] GALIMBERTI, Umberto. L'ospite inquietante: il nichilismo e i giovani. Milano: Giangiacomo Feltrinelli Editore, 2007, p. 31.


[30] CEVOLO, Vicente A. G. L. As sombras vazias. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pouso Alegre, Volume 32, n° 1, jan./jun. 2016. No prelo.


[31] Idem, ibidem.


[32] Idem, ibidem.


[33] BECKETT, Samuel. Krapp’s last tape. Direção de Donald McWhinnie e Patrick Magee. Royal Court Theatre, London, 1958. 1 cassete VHS/NTSC, 44 min.


[34] §§ 15-90, Nachgelassene Fragmente (1887-1889). In: NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Berlin, New York, München, 1988, v.13, p.458-460.


[35] CEVOLO, Vicente A. G. L. As sombras vazias. revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pouso Alegre, Volume 32, n° 1, jan./jun. 2016. No prelo.


[36] Prova empírica insofismável, sem dúvida, encontramos explicitada no poder “astrofísico” gozado pelas ciências da saúde. Outrora pertencida ao Vaticano, ou, então, mais recentemente, ao inconsciente freudiano, a posse da verdade parece ter sido entregue atualmente ao realismo ingênuo dos comitês da Human Genome Organization.


[37] FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975.


[38] Ressaltando-se que, no teatro e na prosa do autor irlandês, o sofrimento não é trágico, mas experimentado com indiferença, monotonia e pitadas de humor negro, formuladas com a função de parodiar o poder humano de significar.


[39] ADORNO, Theodor W. Trying to Understand Endgame. New German Critique, Critical Theory and Modernity (Spring - Summer, 1982), n°. 26, p.134.


[40] BECKETT, Samuel. Malone Dies. New York: Grove Press, 1956, p.14.


[41] BECKETT, Samuel. Malone meurt. Paris: Les Éditions de Minuit, 2012, p.19.


[42] “In any case I didn’t come to listen to her. I got into communication with her by knocking on her skull. One knock meant yes, two no, three I don’t know, four money, five goodbye” (BECKETT, Samuel. Molloy. In: ______ Three novels by Samuel Beckett: Molloy, Malone Dies and The Unnamable. London, 1958, p.14).


[43] BECKETT, Samuel. Fin de partie. Paris: Les éditions de Minuit, 1957.


[44] WIERZBICKA, Anna; GODDARD, Cliff. Semantic primes and cultural scripts in language learning intercultural communication. In: Applied Cultural Linguistics. Amsterdam: John Benjamins, 2007, p.02 et seq. Wierzbicka discute o tema no contexto dos “primitivos semânticos”.


[45] CEVOLO, Vicente A. G. L. As sombras vazias. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pouso Alegre, Volume 32, n° 1, jan./jun. 2016. No prelo.

BIBLIOGRAFIAS

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