top of page

AS SOMBRAS VAZIAS

  • Vicente Cevolo
  • 14 de jan. de 2016
  • 17 min de leitura

Figura 1 - Auschwitz em Maio de 1944

No dia 02-09-1942, Johann Paul Kremer, médico da Schutzstaffel (unidade paramilitar, consagrada pela sigla SS) em Auschwitz, observa, desconcertado, o aniquilamento de massas humanas nas câmaras de gás, intoxicadas com o agente Zyklon B. Em seu controverso diário, hoje documento com valor historiográfico, podemos ler:



“Testemunhei pela primeira vez uma ação especial ao lado de fora às três da manhã. Em comparação, o Inferno de Dante parece-me quase uma comédia. Não é à toa que Auschwitz é chamado de o campo do extermínio” [1]


Para referir-se à alienação de Auschwitz, Kremer faz uso do substantivo feminino Vernichtung, que em língua alemã significa extermínio, extinção, do infinitivo vernichten (vt. exterminar; extinguir). É um substantivo ostensivo que no contexto em questão não deixa dúvida quanto ao que pretende denotar. Mas apesar de sua clareza axiomática que faz menção ao genocídio hebreu, em prática no então domínio político nacional-socialista, o substantivo extermínio parece abrigar um “fundo enigmático”, cujo conteúdo semântico não se encontra apenas coligado à consciência moral do espectador, à escala numérica dos assassinatos ou ao prurido diante do sofrimento alheio.


Evidente que há participação do trauma na composição desse fragmento biográfico.

Por mais cruel que se seja, é pouco provável que alguém consiga permanecer absolutamente indiferente diante da negativa dos soldados às suplicas de misericórdia das vítimas em presença da foice mortífica e da dor aguda. Não é algo trivial. De facto, comparado à brutalidade de um lager nazista, realmente o inferno literário dantesco é uma pobre figura de expressão.


Porém, por detrás do assombro literal da testemunha ocular, compreensível sob o ponto de vista psicológico, o adjunto restritivo “extermínio”, utilizado por Kremer para qualificar a palavra campo, parece transmitir, sobretudo, seu impacto diante de um evento de proporções “místicas”.


Assim, muito embora o diário esteja escrito em linguagem coloquial, junto a rabiscos banais de agenda, as percepções espontâneas que escapam, aqui e ali, do íntimo de Kremer, sugerem que nas “ações especiais”, realizadas pelas unidades da SS, nos campos de concentração e extermínio, eliminava-se algo mais do que honra e corpos físicos. Não obstante, algo símile sente-se no registro cinematográfico feito por Alfred Hitchcock [2], dias depois da liberação soviética. Aqueles subcorpos fragilizados pelo suplício, silenciosamente capturados pela lente hitchcockiana, nus, em condição de natureza, pareciam dar vida a uma estranha “incógnita metafísica” materializada no núcleo da pretensa civilização esclarecida.


Auschwitz não fora um capítulo autorreferente na crônica histórica. Longe de ser um episódio ermo, o extermínio planificado no holocausto deve ser avaliado na qualidade de sintoma com raízes profundas cravadas nas variantes de niilismo circulantes no já distante princípio do século XX.


Niilismo é uma noção posta em causa pela literatura russa, particularmente pelas letras de Turgueniev. Niilista era o cético Bazárov, amigo do jovem Pietróvitch, que não se curvava às autoridades “e não admitia artigos de fé como princípios” [3]. Posteriormente, no final do século XIX, fora conceitualizada nos aforismos nietzschianos, para mais tarde ser reinterpretada por diversas matrizes do pensamento francês (arqueológicas, genealógicas, pós-estruturalistas, etc.).


A extensa semiologia associada ao verbete niilismo fez dele uma noção exigente, difícil de ser imediatamente definida. Entretanto, arrisco-me a dizer que uma época niilista é aquela sistematizada por uma semiótica composta desde um conjunto de diferentes teorias do caos. Quer dizer, um período niilista, particularmente o contemporâneo, é aquele maculado pela construção social de sentido fragmentada e, sobretudo, incoerente. Esta construção dá-se se baseando na ausência de alicerces explicativos fiáveis, na multiplicidade de parâmetros de regulação que não alcança a universalidade da regra clara e no reconhecimento público que não conduz à aceitação das desigualdades movíveis e que dissolve as hierarquias de ser e poder, gerando, com efeito, uma (des)identidade oscilante, catacrética.


Essa identidade desconexa, resultante dos mecanismos incoerentes através dos quais o psiquismo consubstancia suas estruturas de sentido, é a distorção que confere uma imagem mínima às dinâmicas confusas que tipificam as versões hodiernas de niilismo.


O filósofo lombardo Umberto Galimberti, sustenta que a identidade adulta é o estado anímico no qual sabemos quem somos e tememos perder isto que nos tornamos [4].


Penso que uma construção incoerente de sentido, tal qual se observa nos niilismos novecentistas, engendrou uma identidade coletiva pubescente. Lado avesso da identidade madura, na identidade pubescente não se sabe o que se é e teme-se não vir a ser aquilo que se espera tornar. Destarte, trata-se de uma identidade que se constitui na indecisão desbalanceada entre o necessário (dúvida de ser) e o impossível (desejo de ser).


Niilismo, portanto, nomeia a condição em que humano e sociedade, liberados dos paradigmas de equalização, podem finalmente mostrar o que são in loco, a saber, miscigenações trágicas, cuja ipseidade distorcida é montada, fração por fração, com peças de sentido híbridas. Tal geografia de esquemas de sentido, díspares entre si, constitui um mapa identitário impreciso, composto por peças emparelhadas, sem encaixe exato. No lugar de uma unidade de apercepção, que unificaria as diferentes propostas de sentido, a desidentidade niilista possui como núcleo um “centro ausente”, que faz vibrar, no mesmo espaço, as plurirreferencialidades marginais que não se reconciliam na norma norteadora, as reflexividades que não alcançam à completude da identidade definida e os reconhecimentos que não conduzem à síntese vertical das dissimetrias sociológicas.


O núcleo da identidade niilista, acima ilustrado pela metáfora do “centro ausente”, é uma estrutura que bloqueia toda concepção coerente de sentido. Para operar, o esquema convergente necessita de um diagrama que crie órbitas de retorno corretivo, coagindo as dimensões do sentir, pensar e agir antropológicos, em trajetórias dispersas, a centralizar-se como se fossem circunferências con-cêntricas. Ao se tornarem circunferências coercitivas, as órbitas dispersas redirecionam suas trajetórias como se coagidas por forças centrípetas, fazendo com que suas vibrações, correspondentes às gradações da percepção, cognição e ação, gravitem em torno de “centros presentes”, unidades doadoras, donde recebem sentido.


Assim, em vez de apagar as diferenças qualitativas, a construção coerente reconduz as determinações alienadas de si a focos de proporção, para que encontrem sua significância numa identidade conexa.


Desassociando o conceito de sentido do de identidade, a construção divergente, por sua vez, desfaz as conexões de sentido unificadas pelas unidades doadoras. Trabalha com um diagrama oposto ao anterior. Ao invés de órbitas de retorno corretivas, cria rotas de fuga dispersoras, que liberam os graus de senciência, ciência e agência para que prossigam suas rotas como se fossem circunferências ex-cêntricas e desconectadas. Atuando como forças centrífugas, essas circunferências fazem com que os mesmos movimentos das órbitas, antes centralizados à força pelo redemoinho aperceptivo, irradiem para zonas incongruentes, acentuadas pela carência de limites e centros de significação unívoca. Estas externalidades semânticas, sem morfologia definida, são plurívocas e correspondem às intersecções caóticas nas quais rivalizam, aleatoriamente, toda sorte de discursos, perspectivas e interpretações que tonificam o mundo real.


A construção divergente intensifica as diferenças qualitativas, passando a construir seu sentido de modo contingente, lacerado pelas dissimetrias temporais da sociabilidade urbana e ameaçado pelos espaços federalistas, preenchidos pelas tribos idiossincráticas da sociedade civil, com legislação, formas de rotina e organização intelectiva própria.


Analisada objetivamente, a obstrução dos esquemas coerente-convergentes, que proporcionava um identitário social relativamente coeso, acarretou à expansão incontrolável das idealizações incoerente de sentido, de suas bizarras mutações fenotípicas, fazendo do contemporâneo um Leviatã de identidades desconexas.


Com exórdio na modernidade e desfecho no século passado, tal obstrução, que está por detrás da morte do sujeito epistemológico (Foucault, Barthes) e que dá fôlego à crise categórica de suas instituições, completa o ciclo autofágico de formação da consciência moderna. Por sistema, a consciência moderna - totalidade de regimes formais de pensamento, que constroem a inteligibilidade segundo modelos predominantemente gnosiológicos e reflexivos - forjou o sujeito de cultura. Fê-lo edificando fundamentos para referenciar suas operações, oferecendo respostas aos seus por quês e ofertando a uberdade hermenêutica necessária para o nascimento de valores integrativos após cada metamorfose de juízos e critérios de avaliação.


Ao adentrar na fase da identidade pubescente, a consciência produz vida significativa negando-se a si mesma ao criar projetos contraditórios que exaurem os mesmos sentidos que ela havia solidificado e integrado à identidade do sujeito. Neste ciclo, a consciência passa a substanciar-se destruindo os fundamentos que antes havia edificado ao mesmo tempo em que se torna incapaz de oferecer novas referências; volatizando as soluções aos por quês, suspendendo suas respostas; e, como se não bastasse, das metamorfoses transvalorativas já não nascem mais novas entidades, conceitos e valores positivos, capazes de reconciliar as referências das tessituras discursivas, identificar os produtos da reflexividade humana e sintetizar os reconhecimentos e alternâncias em padrões de normalidade onírica, intelectiva e comportamental.


Sem horizontes fundamentais, respostas críveis e valores robustos, na época niilista nada alcança o estatuto de ser, restando aos homens vagar num mundo horizontalizado, tamborilando, em rota de colisão com suas próprias inconsistências.


Suspeito que a figura iconográfica do campo de extermínio representa, como heurística, o ponto de inflexão mais alto no decurso de esvaziamento do sujeito de cultura empobrecido até o nível do corpo biológico infra ou subculturado. Cultura aqui deve ter uma conotação bem precisa vinculada à definição anterior de nossa natureza interpretante: alcunha o processo de criação dos macro e micros esquemas de significância que conferem sentido à vida (ciência, religião, filosofia, etc.) [5].


Essa acepção alargada possibilita-nos entender, então, a expressão “sujeito de cultura” ao pé́ da letra, sem déficit teórico. Quer dizer, como corpo que substancia sua identidade produzindo e anexando cultura a si, isto é, impregnando-se de pontos de vista, inserindo-se em redes explicativas e inventando modelos comunicativos. O que faz do sujeito um artefato ou organismo hiperartificial, cujos olhos são ângulos nocionais, os órgãos são interpretações e a boca é plena de linguagem. No niilismo novecentista, os esquemas de sentido construídos na modernidade, que compõe, como predicados essenciais, o sujeito de cultura, foram exauridos ao limite dele só restar a biologia e seus atributos fisiológicos.


Muitas foram as versões de liquidação do sujeito moderno, associadas ou não aos problemas do niilismo e da Endlösung (“solução final”). Porventura penso que ninguém as prolongou tanto quanto o dramaturgo irlandês Samuel Beckett.


A “ontologia” beckettiana, dita de deformação do ser, interessa-me exatamente porque assume o limite de esvaziamento do sujeito de cultura – que encontra em Auschwitz seu análogo rarefeito na razão histórica - como ponto de partida para sua meditação. Igual a uma antena sensível, o delírio lúcido dos textos e encenações beckettianas, herdeiro da caligrafia joyciana, traduzem a metástase do sujeito cartesiano e de seus sistemas de entendimento, que despontam aos tropeços na Belle Époque, destroçados. Além de exprimirem as diferentes tonalidades de niilismo em voga, os experimentos pós-metafísicos de Beckett revelam os mais diversos ângulos da mencionada involução ou retorno da cultura subjetivo-reflexiva à natureza anônima, por vezes intitulada “desterritorialização”. Indicam que o ser humano, com sua voracidade interpretante, sôfrega, associada à irresistível tendência à aniquilação, ao tentar distender a plasticidade do sentido até fronteiras que nem a dialética transcendental de Kant poderia supor, desabitou-se de si.


Desde o principio, o teatro e os romances beckettianos propõem anatomias infraculturadas. Em cenários insólitos, inicialmente interagem tipos literários que mais se assemelham à coisidades de gênero neutro, absolutamente não familiares. Sem fantasia e maiores esperanças, parte-se da ruína deixada pelo ciclo autofágico da consciência moderna. A galeria de personagens, em geral, é povoada por decrépitos terminais, em situação de pobreza extrema. Por meio da gradual subtração de suas qualidades e predicados, principalmente escassas, Beckett faz o corpo subculturado, forma sublimada do sujeito de cultura, declinar a um estado de pobreza ainda maior. Theodor Adorno [6] intitula tal condição limítrofe grau ontogenético primitivo.


O grau ontogenético primitivo é o limite do processo de prolongamento das versões de liquidação do sujeito de cultura. Nele se radicaliza o esquema divergente de sentido. Todavia, essa radicalização não suscita uma nova cascata de sentidos incoerentes, a espalhar, tal qual uma explosão fractal, pedagogias político-institucionais e economias egóicas com identidades desconexas. O grau ontogenético primitivo é o momento em que o ciclo niilista da consciência moderna é posto violentamente diante de sua real natureza anticíclica. Defronte ao espelho de si, a consciência dá-se conta do sempiterno imo arbitrário que sempre habitou as entranhas de sua lógica ora sensata ora insensata. Diante de seu fracasso, só lhe resta ser anedótica consiga mesma e cruel. Inicia-se então um processo de extermínio (eis a conotação essencial da palavra) paulatino do próprio sentido, iluminando, à lamparina, sua verdade pós-apocalíptica, mesclada ao vazio das sombras fenomênicas: a não identidade.


A erradicação das matrizes coerente e incoerente de sentido é consumada esgotando-se o sujeito de cultura que as formula e as anexa para arquitetar sua identidade. Seu objetivo precípuo é desconstruir positivamente a linguagem. Os predicados do sujeito são exauridos, então, obedecendo a um tempo gradativo e a uma ordem simultânea [7].


Tudo se inicia pelo agravamento da pobreza física. De uma circunstância de mobilidade parcial, dificultosa, os personagens caminham aos poucos para a imobilidade quase absoluta: os mancos passam a arrastar-se pelo chão; a visão míope de um olho progride a passo e passo à cegueira avançada dos dois olhos; a lesão na medula conduz implacavelmente à paralisia.


Concomitante à penúria física que dizima o corpo, avança em marcha paulatina o empobrecimento cognitivo da mente. No fundo lógico dos parágrafos, as premissas não geram conclusões, e os protótipos de homem, atônitos, perdem-se propondo metáforas mortas, locucionando absurdidades de nexo apenas aparente. Já a pobreza cognitiva, por sua vez, liga-se organicamente ao pauperismo mnemônico. Malone, enquanto espera a morte em seu quarto, confunde-se, sem mais, com as figuras que povoam as falsas narrativas que ele mesmo reconta: é Macmann, mas também pode ser Moll ou qualquer outro [8]. Os prenomes são negados, às vezes inventados, as filiações parentais e linhagens são todas esquecidas [9]. A memória do escritor extingue-se lentamente à medida que a ponta de seu lápis diminui [10].


Até que entre o pauperismo mnêmico, aliado à escassez cognitiva, surge-nos Beckett com um desedificativo espetáculo de indigência moral e práticas gratuitas de crueldade. Nela o choro é simples ato mecânico, desprovido de intencionalidade e sentimento; as masturbações, casuais e sem objeto de desejo, não culminam em gozo opulente [11]. O filho golpeia fortuitamente o crânio de sua suposta mãe sem necessidade de explicar-se ao leitor ou concatenar o evento ao enredo [12].


Eliminadas as qualidades coadunadas na identidade do sujeito, retorna-se ao tempo primitivo. Porém um tempo que não quer dizer o cronologicamente antes, mas que dá figuração à presentificação intemporal, aorística, que sempre fomos. Este tempo atemporal é o da epifania, no qual os labirintos, sem arrefecer, apontam-nos uma disposição existencial única. A epifania do tempo primitivo traz algum esclarecimento sobre o dadaísmo narrativo e cênico que perplexifica o leitor. Descobre-se que as personalidades pueris confundiam-se, que os espaços naturais sumiam e reapareciam, tudo ao bel-prazer dos protagonistas porque não passavam de ficções inventadas com detritos de linguagem. Eram restos culturais remanescentes de uma civilização já em irreversível ocaso.


O último trâmite, assim, para ultimar o ciclo de esvaziamento do sujeito de cultura consiste num dúplice artificio. Simultaneamente, contrai-se o real, reduzindo sua prolixidade à ficção linguística de quinta categoria, e refuta-se a própria linguagem, ventre do sentido. Para isso, Beckett cria uma gramática minimalista que contesta a propriedade elíptica da linguagem, objetando-a enquanto expressividade analógica de pressupostos abstratos mais essenciais, ou mediação refletora no isomorfismo de estrutura entre sistemas categorias e dinâmicas ônticas.


Nesse aspecto, cabe a advertência presente no naturalismo linguístico da polonesa Anna Wierzbicka [13]. Comunicar é fazer-se compreender, traduzindo o que se diz num léxico partilhado. Ou seja, para que dois sujeitos comuniquem-se, o conteúdo semântico da língua particular de cada colocutor, intransponível à partida, deve ser traduzido. Para sê-lo, a carga significativa há de ser decomposta de seus termos originais e recomposta com os termos de uma sintaxe subjacente mínima (primitivos semânticos), inteligível e disponível aos interlocutores. A compreensão ocorre quando se supera a barreira da incomensurabilidade semântica da língua natural, singular, e a mensagem é traduzida no interior de uma língua comum.


Misantropa, a prosa beckettiana não possui subjacência sintático-semasiológica que proporcione a comensurabilidade. Hamm, o paralítico cego, e seu criado Clov não podem comunicar dialogando entre si em Fim de Partida [14]. Ambos são ínsulas incomensuráveis. Cada frase pronunciada nega o sujeito que predica o verbo, a conjunção aditiva não une mais dois períodos oracionais. O ato locucionado comunica a impossibilidade de comunicar. Na fonética, não há especificidade que diferencie os sons; no campo fonológico, não existem sonoridades sintetizadas em padrões; na morfologia, as palavras não têm estrutura interna; na sintaxe, os elementos oracionais não conseguem combinar-se para formar períodos complexos; na estilística, os gêneros mesclam-se para fazer vagir o anônimo sem estilo; na pragmática, as ressonâncias perlocucionária destroem os atos locucionários; não há lembrança para haver filologia. Afinal, todo o material cênico e literário é falacioso.


Mas por qual razão o é?


É retórica porque nunca estivemos nem mesmo em grado de afirmar que são ficções de linguagem. E é retorica cínica porque os protagonistas, produtores de ações repetitivas e seriadas, sabem disso. São conscientes de que no mínimo o que são e o que tentam fazer é puro jogo de linguagem, e que, no limite, nem isto podem sustentar. Para dizer que o seu “si” é si mesmo, cada protagonista precisaria de “olhos transcendentes”, isentos de massa ocular, exteriores à instabilidade das ficções [15].


Para afirmar que o Eu (identidade) é um ser real, ou mesmo uma mera ficção, os personagens deveriam ser capazes de sair deles mesmos, desdobrarem-se num duplo para olharem-se, sem que sejam si mesmos. Mas se não há dimensão acima das ficções, produzidas com sobras de linguagem, eles não podem olhá-las, como olhos fictícios, dizer que são, dizer que existem ou não existem, em suma, proferir qualquer coisa a seu respeito, sem sê-las inteiramente. Seu cinismo é coerente: entende que a explicação da ficcionalidade pressupõe o seu uso, metendo-nos numa circularidade ontológica e autorreferencial sem saída pela porta dos fundos [16]. Sem o duplo extraperspectivo e impossibilitados de sustentar qualquer crença, até mesmo esta crença que os leva a suspeitar, esgotam-se. Esgotados, não podem mais criar sentido.


No grau ontogenético primitivo, os homens completam o ciclo oracular. São colocados nus diante de si, só lhes restando vir a ser o que são. Porém, faz-se necessário precisar que não se trata de um retorno hegeliano; tornar-se não diz respeito a um sentido imediato que se revela sentido efetivo reconciliando seus dois modos de pôr-se, ou seja, de pôr-se a si como diferente de si em seu ser-mesmo e, pari passu, de pôr-se a si mesmo como idêntico a si em seu ser outro, reconduzindo esquemas de sentido contraditórios à coerência do sujeito pleno [17]. Porém, trata-se menos ainda de um retorno deleuziano; tornar-se não é ausentar-se enquanto sujeito para reaparecer como abertura rizomática na qual vibram, por todos os lados, inconstantes, esquemas de sentido incoerentes [18]. Ambos os modos são fugas da ausência, da desaparição, formas de preenchê-las com sentido.


À contra luz das propostas anteriores, o exaurimento beckettiano ensina-nos que retornar a si mesmo é mofar, abolorecer sob uma aporia irresolúvel, no centro ausente do anel formado pela necessidade das ficções (eliminando todo sentido) e a impossibilidade da extraperspectividade (permanecendo no hiato identitário).




Epílogo


Devemos entender que sob o extermínio de Auschwitz, por detrás das experiências de Josef Mengele, abaixo da impoluta parafernália historiográfica que o reduz a problema ídeo-politico dos estados totalitários jaz um subtérreo mais profundo. Subterrâneo intuído pelo pensamento beckettiano, jamais isolado dos factos. No desfecho de L'innommable (O Inominável, 1953), último romance da trilogia pós-guerra, damo-nos conta de que os personagens não falam de nada.


Nunca falaram. Molloy e Malone, “protagonistas” dos dois primeiros romances da trilogia, possuem precisamente a mesma fisionomia: são nulidades, nadas. Mas nulidades que comunicam nada porque nada mais havia restado no fraturado mundo europeu. Desse modo, não são criações estranhas, frutos da abstração de um autor inconseqüente. São ecos lúcidos de uma época sui generis, que com suas atrocidades e eliminacionismos dementes escancarou, sem a suavidade dos eufemismos, a face aporética de nossa própria alma.


Tanto o “fundo enigmático” que desconcerta o espírito do médico nazista quanto à indigesta “incógnita metafisica”, suscitada pela leitura de Hitchcock, despertam na reflexão uma sombria sensação de incompletude, de alguma coisa que vemos e que não se explica por si só. Digo isto não por ambas serem dramatizações que talvez mascarem o próprio in persona. Seguramente há quem as interprete como propaganda sionista. Os negacionismos, por exemplo, de Bardèche, passando por Rassinier até Faurisson, releem o problema do holocausto na condição de pirotecnia que nos desvia do verdadeiro subterrâneo ideológico da Shoah [19]. Entretanto, o interessante nas indagações é que ao invés de nos aproximar, afastam-nos do que vemos. Por que ao falarem da coisa, este falar, ao invés de mostrá-la, afasta-nos dela, fazendo-nos crer que ali há algum pormenor inacessível que vibra secretamente? Por que Auschwitz é tão inexplicável nas ilações positivas que tentam explicá-lo?


As melhores percepções sobre o holocausto insinuam frequentemente algum “insondável” em seus argumentos porque fogem instintivamente do encontro com o nada e a suspeita, intoleráveis, ali ofertados, os mesmos que nos perfuram e que são por nós intuídos da tenra infância à maturidade. Para evitá-las, a mente torna a nulidade e a suspeita incógnitas. Fazê-lo é o cinismo involuntário mais eficaz para evitar o confronto com sua luminosidade que nos recorda a presença da arbitrariedade, do desamparo ontológico sem saída e da ausência completa de memória no fim de toda construção humana de sentido.


Prendendo a identidade à decisões de sentido irremediavelmente vinculadas aos cômputos de natureza niilista, aproximamo-nos do nível mais avançado de nulificação jamais alcançado. Os sub-humanos (Untermenschen) de Rudolf Höß e os restos de exumação de Beckett são sombras vazias, espectros que habitam a mesma noite da indiferenciabilidade absoluta. Causam-nos cegueira porque espelham fielmente o que não queremos e não podemos ver: nosso terrível destino de permanecer no deserto do talvez:


“Deitei sobre ela na sombra, seus olhos se abriram e eu entrei (...). Jamais conheci silêncio tão grande. É como se a terra estivesse desabitada” [20]






Publicado em: Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pouso Alegre, Volume 32, n° 1, jan./jun. 2016.


Figura 1: U.S. Fonte: Holocaust Memorial Museum, Auschwitz-Birkenau Museum.



NOTAS


[1] “Male draussen um 3 Uhr früh bei einer Sonderaktion zugegen. Im Vergleich hierzu erscheint mir das Dante'sche Inferno fast wie eine Komödie. Umsonst wird Auschwitz nicht das Lager der Vernichtung genannt!” (SS-Doctor Kremer. In: Death Books From Auschwitz: Remnants, Vol. I, Appendix, 1995, p. 185, tradução nossa).


[2] HITCHCOCK, Alfred; BERSTEIN, Sidney. German Concentration Camps Factual Survey. United Kingdom, Psychological Warfare Division, SHAEF, 1945.


[3] TURGENEV, Ivan Sergeevič. Padri e figli. Milano: Fratelli Treves, 1930, pp.87-88.


[4] “(...) quella fase precaria dell'esistenza che è l'adolescenza, dove l'identità appena abbozzata non si gioca come nell'adulto tra ciò che si è e la paura di perdere ciò che si è, ma nel divario ben più drammatico tra il non sapere chi si è e la paura di non riuscire a essere ciò che si sogna” (GALIMBERTI, Umberto. L'ospite inquietante: il nichilismo e i giovani. Milano: Giangiacomo Feltrinelli Editore, 2007, p. 31).

[5] §§ 15-90, Nachgelassene Fragmente (1887-1889). In: NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Berlin, New York, München, 1988, v.13, p.458-460.


[6] ADORNO, Theodor W. Trying to Understand Endgame. In: New German Critique, Critical Theory and Modernity (Spring - Summer, 1982), n°. 26, p.134.


7] Nesse ponto, a tendência beckettina é clara: “Percebi que meu próprio percurso estava no empobrecimento, na falta de conhecimento e na extração de elementos; na subtração, mais do que na adição” (KNOWLSON, James. Damned to Fame: The Life of Samuel Beckett. Londres: Bloomsbury, 1996, p.352, tradução nossa).


[8] “For Sapo, no, I can’t call him that anymore, and I even wonder how I was able to stomach such a name till now. So then for, let me see, for Macmann, that’s not much better but there’s no time to lose, for Macmann might be stark staring naked under this surtout for all anyone would be any the wiser” (BECKETT, Samuel. Three novels by Samuel Beckett: Molloy, Malone Dies and The Unnamable. London, 1958, p.229).

[9] “L’homme s’appelle Saposcat. Comme son père. Petit nom? Je ne sais pas. Il n’en aura pas besoin. Ses familiers l’appellent Sapo. Lesquels? Je ne sais pas” (BECKETT, Samuel. Malone meurt. Paris: Les Éditions de Minuit, 2012, p.19).

[10] “For it is evening, even night, one of the darkest I can remember, I have a short memory. My little finger glides before my pencil across the page and gives warning, falling over the edge, that the end of the line is near” (BECKETT, Samuel. Malone Dies. New York: Grove Press, 1956, p.14.


[11] Beckett, op.cit., p.18.


[12] “In any case I didn’t come to listen to her. I got into communication with her by knocking on her skull. One knock meant yes, two no, three I don’t know, four money, five goodbye” (BECKETT, Samuel. Molloy. In: ______ Three novels by Samuel Beckett: Molloy, Malone Dies and The Unnamable. London, 1958, p.14).


[13] WIERZBICKA, Anna; GODDARD, Cliff. Semantic primes and cultural scripts in language learning intercultural communication. In: Applied Cultural Linguistics. Amsterdam: John Benjamins, 2007, pp.02-06.


[14] BECKETT, Samuel. Endgame: A play in one act. In: ______ The Theatrical Notebooks of Samuel Beckett. London: Faber and Faber, 1992, Vol. 2, pp. 1-42.


[15] ROSSET, Clément. Le reel et son double. Essai sur l'illusion. Paris: Gallimard, 1993.


[16] “It will be I? It will be the silence, where I am? I don't know, I'll never know: in the silence you don't know. You must go on. I can't go on. I'll go on” (BECKETT, Samuel. The Unnamable. New York: Grove Press, 1978, p.103).


[17] HEGEL, G.W.F. Phänomenologie des Geistes. In: ______ Werke in zwanzig Bänden. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974, p.579.


[18] DELEUZE, Gilles. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969, p.41 et seq.


[19] PISANTY, Valentina. L’irritante questione delle camera a gas. Logica del negazionismo. Milano: Bompiani, 1998, pp.5-26.


[20] BECKETT, Samuel. Krapp's Last Tape. Direção Donald McWhinnie e Patrick Magee. Royal Court Theatre, London, 1958. 1 cassete VHS/ NTSC, 44 min.



BIBLIOGRAFIAS


ADORNO, Theodor W. Trying to Understand Endgame. New German Critique, No. 26, Critical Theory and Modernity (Spring – Summer), 1982.


BECKETT, Samuel. The Unnamable. New York: Grove Press, 1978.


____. Three novels by Samuel Beckett: Molloy, Malone Dies and The Unnamable. London, 1958.


______. Malone Meurt. Paris: Les Éditions de Minuit, 2012.


______. Malone Dies. New York: Grove Press, 1956.


______. Krapp's Last Tape. Direção Donald McWhinnie e Patrick Magee. Royal Court Theatre, London, 1958. 1 cassete VHS/ NTSC, 44 min.


______. Endgame: A play in one act. In: ______ The Theatrical Notebooks of Samuel Beckett. London: Faber and Faber, 1992, Vol. 2, pp. 1-42.


DELEUZE, Gilles. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969.


GALIMBERTI, Umberto. L'ospite inquietante: il nichilismo e i giovani. Milano: Giangiacomo Feltrinelli Editore, 2007.


HITCHCOCK, Alfred; BERSTEIN, Sidney. German Concentration Camps Factual Survey. Produção de Sidney Bernstein, escrito por Richard Crossman e Colin Wills. United Kingdom, Psychological Warfare Division, SHAEF, 1945. 1 cassete VHS / NTSC, 72 min. s/cor. son.


HEGEL, G.W.F. Werke in zwanzig Bänden. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974.


KNOWLSON, James. Damned to Fame: The Life of Samuel Beckett. Londres: Bloomsbury, 1996.


NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Ed. G. Colli und M. Montinari. Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Berlin, New York, München, 1988.


PISANTY, Valentina. L’irritante questione delle camera a gas. Logica del negazionismo. Milano: Bompiani, 1998.


ROSSET, Clément. Le reel et son double. Essai sur l'illusion. Paris: Gallimard, 1993.


WIERZBICKA, Anna; GODDARD, Cliff. Semantic primes and cultural scripts in language learning intercultural communication. In: Gary Palmer and Farzad Sharifian (eds.), Applied Cultural Linguistics: Implications for second language learning and intercultural communication. Amsterdam: John Benjamins, 2007.


TURGENEV, Ivan Sergeevič. Padri e figli. Traduzione e prefazione di Federigo Verdinois. Milano: Fratelli Treves, 1930.


SS-Doctor Kremer. In: Death Books From Auschwitz: Remnants, Vol. I, Appendix, 1995.









Comments


Destaque
Tags

    Copyright © 2015. Todos os direitos reservados. 

    bottom of page