AS INTRIGAS DE ANÃO
- Vicente Cevolo
- 23 de mai. de 2015
- 2 min de leitura

Das desvantagens da superioridade intelectual [1], escrito pelo literato inglês William Hazlitt, é o mais honesto ensaio de crítica moral que já havia lido. Sua franqueza despudorada, nada ingênua, atua como ácido fluorídrico, com impiedosa força corrosiva, naquele gênero de formalismo cínico, que insiste em nivelar por baixo o essencialmente desigual. Hazlitt mete-os em “palpos de aranha”.
É certo que as ponderações de Hazlitt estão permeadas de desconfiança e rejeição próprias da nobreza de sua época. São excessivas para uma mente habituada ao viver liberal. Porém, é inegável que contêm algumas verdades dilacerantes, extirpadas da linguagem democrática positiva, embora imprescindíveis para o entendimento da lógica social de qualquer tempo.
A mais perspicaz dentre as verdade eternizadas pelo crítico inglês em Da Desvantagem relaciona-se à dilapidação progressiva dos conceitos de superioridade e inferioridade no período moderno. Dilapidação dada como efeito colateral de uma época que transforma as mais ordinárias formas de viver em modelos exemplares de pensamento e conduta significativa.
Como o próprio título deixa entrever, a musculatura principal desse ensaio dá fibra à constatação da enorme inconveniência da superioridade intelectual e moral nas sociedades onde a mediania é rainha. Num mundo composto por maioria mediana e/ou obtusa, quem se volatiza até o céu da alta cultura estaria condenado à introversão de gueto, ao ostracismo coato. Mas o principal infortúnio imposto ao intelecto súpero, que haverá de enfrentar a duras penas, não consiste tão só na incompreensão generalizada de seu pensamento, até mesmo entre pares. Associa-se à falsa imagem pública do incompreendido, idealizada pelo vulgo estúpido desprovido de instrumentos para transcender seu limitado campo de visão, sempre restrito às depressões relativas abaixo das montanhas mais altas.
Hazlitt tem razão em termos. As pessoas medíocres jamais serão capazes de construir a imagem de alguém com base em virtudes distintivas, talentos e feitos de destaque. À luz do expectado, gente amiudada não é capaz de enxergar-nos a partir de nossas qualidades, que evidenciam o fosso entre nós e elas; nossas falhas de percurso, as fissuras de caráter e os mais insignificantes detalhes - que sabidamente nos atormentam em nosso quotidiano - é que são as tintas empregadas pela mamparra rastaqüera para colorear nosso retrato. Um defeito congênito, a calça amarrotada, a necessidade do subemprego para bancar um doutorado, tudo é material para o imaginário inferior, para moral plebéia.
O que é compreensível, pois se a escumalha construísse nossa imagem com base em nossas excelências, e não apenas atenta aos nossos vícios e escorregadelas, estaria a afirmar sua inferioridade relativa defronte a nossa escandalosa superioridade. No pugilato civil, as qualidades visíveis não compõem nosso retrato porque seus autores não as percebem, ou, então, se percebem… não são capazes de suportá-las. Passam em branco. Provar que temos todos igual peso na balança é um alívio para o anão intrigueiro. Pois, para um espírito chuleba, reconhecer o conceito de superioridade equivale a lembrar-se da nulidade social em que está metido, recordar-se do nada interior que ele é.
[1] HAZLITT, William. On the Disadvantages of Intellectual Superiority. In: Table Talk, Essays on Men and Manners, 1822.
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