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CARA E CRACHÁ

  • Vicente Cevolo
  • 5 de mar. de 2015
  • 4 min de leitura


A mais simples e genial definição de regra está formulada em Investigações Filosóficas (Philosophische Untersuchungen, 1953). Nesta obra revolucionária, o filósofo austríaco, Ludwig Wittgenstein, definiu-a criando uma relação indissociável entre sua identidade formal e seu uso pragmático na linguagem. Havia percebido que a explicação de toda regra pressupõe, com efeito, o uso da própria regra. Portanto, regra é a maneira como nós a utilizamos a cada vez, imersos em circunstâncias distintas, com o objetivo de realizar finalidades distintas. Assim como a linguagem, regra é tal-qualmente uso. A mais simples e genial definição de regra está formulada em Investigações Filosóficas (Philosophische Untersuchungen, 1953). Nesta obra revolucionária, o filósofo austríaco, Ludwig Wittgenstein, definiu-a criando uma relação indissociável entre sua identidade formal e seu uso pragmático na linguagem. Havia percebido que a explicação de toda regra pressupõe, com efeito, o uso da própria regra. Portanto, regra é a maneira como nós a utilizamos a cada vez, imersos em circunstâncias distintas, com o objetivo de realizar finalidades distintas. Assim como a linguagem, regra é tal-qualmente uso.


No Brasil, da prosa rotineira de uma quitanda de esquina às pirotecnias retóricas do ordenamento jurídico, há uma crença geral, culturalmente sedimentada, de que o bom uso da regra, o mais eficaz, dá-se quando as instituições aplicam-na de maneira rigorosa às dinâmicas sociais. Jungida a essa crença, associa-se imediatamente uma outra ainda pior: se a regra falha, foi exatamente porque não se soube aplicá-la em todo o seu rigorismo, fazendo com que permaneça enquanto princípio abstrato, mera entidade papelesca. A partir daí, para fundamentar a crença, apela-se ao manobrável mundo das estatísticas sociológicas, apoiando-se em exemplos quantitativos de países (em geral, da Europa Setentrional, de raiz germânica) em que, segundo se crê, é sempre bom sublinhar, o seguimento das regras funciona à medida que os cidadãos sabem que elas serão aplicadas de modo impreterivelmente severo, com pouca flexibilidade para justificativas de burlo e diminuto espaço respirável para tolerâncias.


Muitos são os casos que evidenciam a enorme disseminação dessa crença tola entre nós. O funcionalismo público, por exemplo, presenteia-nos, todos os dias, com notáveis ilustrações do caso. Faça o leitor um pequeno teste. Vá a uma repartição pública e assuma um compromisso que pressupõe datas. Ultrapasse a data limítrofe para a entrega do combinado e observe a reação do funcionário responsável. Questione-o para saber onde é que houve a falha e se o sistema foi eficiente no seu funcionamento interno. Aposto, como dois e dois são quatro, que ele responderá, naturalmente a seu modo, que a falha encontra-se na não observância (seguimento) correta da regra; a eficiência do sistema, na sua aplicação integral e incondicional. A regra era: entregar no máximo até o dia 28. Se seguirmos estritamente a regra, passamos de fase, se não a cumprimos em sua regularidade mínima, somos punidos. Se a regra funcionar, funcionar bem, com exceção para poucos casos em que a justificativa apresentada convence ou é prevista no próprio regulamento, não haverá dia 29 para entregas, independentemente do que se possa alegar.


Entretanto, penso que nos países em que o “seguir regras” é levado a sério, a coisa definitivamente não transcorre em conformidade com tal inflexibilidade de infantaria. Devemos compreender que no psiquismo coletivo dessas sociabilidades, não existe a preponderância do mecanismo binário “dentro da regra” versus “fora da regra”. Não funciona como no Brasil. Em terras tupiniquins, se o indivíduo não se adequa à nervura principal da musculatura da regra, assume-se logo que ele está fora dela, devendo ser devidamente punido. Isto não significa que não há padrões de normalidade e regularidade reconhecíveis nessas sociabilidades. Evidente que eles os têm, são conscientes do que é estar dentro e do que é estar fora das regras. De modo muito mais peremptório do que nós, aliás, as pessoas sabem separar o joio do trigo, o permitido e o vedado têm fronteiras relativamente claras.


O que desejo com esse cotejamento entre concepções de mundo diferentes é tão somente destacar o modo mecânico-bipolar e absolutamente empobrecedor com que os brasileiros lidam com o campo plurívoco e multifacetado das regras. Sem paciência analítica mínima, adquirida com bons anos de educação fundamental, e sem o conhecimento adequado de legislações e regulamentos (contextos nos quais entendemos o funcionamento, os limites de aplicação e, principalmente, o sentido das regras), não se trabalha a flexibilidade da regra no Brasil. Mormente, faz-se exatamente o contrário à medida que se confunde, com facilidade, flexibilidade com frouxidão. Pensam: se a regra é flexível, não funciona nem como norte nem como freio. Mas flexibilidade não implica necessariamente frouxidão dos limites da norma. Pode significar simplesmente conhecimento do que sua internalidade possibilita resolver.


Ao invés de seguir às cegas os regulamentos, com base nessa preguiçosa lógica binária do “dentro” versus “fora”, do cara e crachá, os povos germânicos, em geral, exploram à flexibilidade da regra, manipulam, melhor do que nós, todo o campo da norma (seus usos, suas nuances). Não obstante, aplicar a regra de modo eficiente não significa demarcar imediatamente a conduta que a contempla e a que dela escapa, beneficiando ou punindo. Significa explorar, de modo amplo, as possibilidades da própria regra, oferecendo soluções para que os indivíduos a ela se compatibilizem, evitando, assim, aquela que deve ser a última medida, a saber, a punição pelo não cumprimento normativo. Para condutas que ultrapassam o limite das regras, a punição certamente é rigorosa. Entretanto, antes de punir o que está fora da regra, devemos ser capazes de apresentar meia dúzia de alternativas concretas, não para tornar a regra atrativa ou submetê-la ao arbítrio subjetivo, mas para evitar que o indivíduo escape do seu domínio e possa contemplá-lo. Mais do que punir, trabalham para que as pessoas permaneçam no interior da regra, cumprindo-a.


Nesse sentido, nos países em que as regras funcionam igualmente não se tolerará entregas após a data limite, estipulada pelo regulamento. É muito provável que o castigo seja mais implacável. Porém, à revelia do que se passa no Brasil, nesses países o número de alternativas oferecidas para que os sujeitos consigam permanecer no interior das regras é incomparavelmente maior e mais inteligente. Ao invés de ser sinônimo de eficiência na aplicação das normas, a necessidade elevada de punições é forte indicativo de que ela é falha e de que precisa ser reestruturada.




BIBLIOGRAFIAS


WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigation. London: Wiley-Blackwell, 2009



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