VESTIBULANDOS A VIDA INTEIRA
- Vicente Cevolo
- 22 de mar. de 2015
- 5 min de leitura

O vestibular é uma obsoleta rotina didática legitimada e pré-acordada por um cambalacho silencioso formado entre poder ministerial, instituições públicas de educação superior e empresas de ensino privado. Malgrado a laboriosa mão de obra para aplicá-lo, e o abacaxi dos “insuspeitos” comitês corretores, a mecânica básica, que anima a indústria dos vestibulares no Brasil, é relativamente simples, podendo ser resumida numa única oração. Tal mecânica consiste em selecionar memórias capazes de reter enorme quantidade de informações condensadas, absorvidas de apostilas toscas, compradas a varejo no lucrativo comércio dos cursinhos preparatórios, cuja qualidade do serviço varia em razão diretamente proporcional ao peso da carteira.
Como é manifesto, o grosso das provas vestibulares jamais se propõe a selecionar cérebros com domínio de algum conhecimento em inteiro teor, advindo da leitura atenta das grande obras literárias, de formação clássica no colégio (inexistente no Brasil) e de experiências lúdicas no mundo. Provar competências equivale aqui a mostrar-se perito em relacionar blocos de informação sintetizada, “notícias longínquas” de saberes. Seu projeto político-pedagógico, portanto, age num parêntese que prioriza a informação e posterga o conhecimento, como se não houvesse conhecimento antes da universidade, e como se a universidade fosse o recinto exclusivo do conhecimento; não fosse assim, jamais haveríamos de ter essa elevada cifra de analfabetos funcionais nos melhores cursos de doutoramento do país (sabidamente os federais e estaduais).
A transição do “modelo decorativo” de vestibular para o “modelo interpretativo”, que se pretende corretora desse parêntese dado entre informação e conhecimento, só existiu em aparência nos documentos de gabinete. Em verdade, tivemos apenas uma irrisória cedência metodológica, conservadora profunda da essência “informativa e memorizante” do velho modelo, que só convence críticos de província. O formato taylorista e a temporalidade estressora do processo seletivo bloqueiam, à partida, qualquer possibilidade de reflexão séria; nessa avaliação, não há “espaço analítico” para o interpretar exegético e “espaço livre” para o criar interpretativo. O propósito desse gênero de provas é outro. Estritamente aritmético, o vestibular objetiva preencher com bateladas de números inteiros a configuração gráfica das vagas disponíveis. A juventude, vítima por sistema, é afastada da real sapiência ao invés dela estar próxima; o reservatório de conhecimento efetivo, a virtualidade semântica da linguagem, que deveriam ser “dispostos” por cada educando para manifestar sua liberdade expressiva, encontram-se secundarizados pela urgência utilitária da informação que se “impõe”.
Se quiserem prosseguir no atalho que conduz à ilustração, ao menos técnica, ou seja, adentrar no ensino superior, os jovens serão obrigados a passar o último ano do ensino médio, ou, às vezes, até anos a fio em cursos preparatórios, no caso dos primeiros ciclos mais concorridos, a manejar informações superficiais que serão abandonadas no primeiro semestre acadêmico.
Porém, no Brasil, infelizmente a figura do vestibulando, terrivelmente patética, não se extingue com o vestibular. Nosso sistema educacional, em seus níveis pré-secundário e pós-secundário, promove-a com sua concepção alérgica ao vocábulo educação (no sentido do verbo grego paideuō, “formação”). O imperativo burocracial da “prova dos noves” torna-nos vestibulandos uma vida inteira.
A razão da persistência da pedagogia dos testes, núcleo da cultura vestibularesca, deve-se, sobretudo, a um dilema de natureza ética. Apenas para efeito de esclarecimento, cotejemos, nesse aspecto, o modelo educacional brasileiro com o europeu. Como não há Europa, no singular, mas países europeus, no plural, cotejemo-lo à filosofia que se descola, por exemplo, das matrizes educacionais dos países nórdicos (Dinamarca, Suécia, etc.), muito ligada ao tipo de interação antropológica ali presente. Ao contrário do Brasil, nas sociabilidades dos países setentrionais é comum haver normas comportamentais mais transparentes no que tange à postura frente ao outro, especialmente quando se está numa correlação profissional, no mercado de trabalho, ou, então, num liame institucional qualquer. O que para nós sugere uma certa ingenuidade utópica - acostumados que estamos à completa ausência de parâmetros sociais amplos, à presença apenas quantitativa do Estado nos estados e a falta de uma geografia emotiva, compreensível para nós mesmos-, para eles são ideais reguladores normalizados, necessários para manter a adequação sã do status quo. Uma dessas condições normativas implícitas consiste em partir do pressuposto de que o individuo é realmente cidadão, isto é, um sujeito que, embora imprevisível como toda entidade finita, é detentor de um mínimo de conscienciosidade, com direitos a gozar e deveres a cumprir.
Nos ritos educacionais de passagem, o reflexo dessa postura polida ante outrem é decisivo. Sim, existem particularidades pedagógicas que não podemos nos esquecer. Por exemplo, em certas democracias do Norte, o aluno é incorporado mais organicamente aos ciclos superiores, sem que necessariamente tenha que atravessar o limite da seleção canônica. Porém, tanto numa forma como noutra, o interessante é que as técnicas didáticas setentrionais, apesar da extrema rigidez disciplinar (“treinam cavalos”, como ouvi certa vez de um amigo), não submetem o potencial corpo discente à inquérito policial.
Tal qual a intermodalidade funciona nos estratagemas de mobilidade urbana, interligando entre si os meios de locomoção aéreo, terrestre e aquático, nesses países os ensinos primário, médio e colegial vinculam-se cerebralmente à cultura universitária. A juventude chega ao ensino superior com escolaridade fundamental bem sedimentada, aliada a esquemas cognitivos e valores familiares tangíveis que a torna mais ciente acerca da distribuição social de papéis e da atribuição de responsabilidades. Em geral, a utilização da “prova”, nos velhos moldes da autoridade palmatória, não se mostra imprescindível. Se a altíssima competitividade exigir provas dificílimas, e nalguns desses países elas existem mesmo, é para apartar estudantes mais preparados dos menos preparados, nunca para excluir os absolutamente não preparados (esmagadora maioria no Brasil, onde até a elite pagante enrubesce-nos com seu habitual apedeutismo e cultura de entretenimento).
Na grandeza estatística, esses últimos simplesmente não existem nesse países, seu número é irrelevante (vide gráficos da OCDE, acessíveis em língua inglesa). Com uma boa formação clássica nos períodos preliminares, na maior parte das vezes basta a análise curricular, uma avaliação de proficiência e/ou o depósito de um projeto piloto bem feito para deslocar-se ao nível superior. Se omite algum dado importante sobre suas competências reais, a punição à candidatura proposta é severa, não há “jeitinho”. Mas, normalmente, os avaliadores confiam na responsabilidade cidadã daquele que se submete ao concurso. Não é preciso “provar” no vestibular, o itinerário escolar do aprendiz competente já é a prova cabal.
Evidentemente que na terra do arabutã, localizada há distâncias astrofísicas do IDH nos alpes escandinavos, a pedagogia investigativa dos testes faz todo sentido e sucesso. Fá-lo porque se compatibiliza à postura assimétrica frente ao outro, axiologicamente negativa, e ao despreparo real do aluno. Ao invés de ser contemplado enquanto educando pleno de potências a ser desenvolvidas, no caso daquele que transita da escola à graduação, ou, na pós-graduação, como investigador sério em fase de profissionalização, no Brasil parte-se sempre do pressuposto de que o estudante é um amador imbecil, um tratante até que se diga o contrário.
Alimentada por essa ética da suspeita a priori, que investiga o malandro ao invés de fomentar o cidadão ou a cidadã, a lógica do vestibular persiste em todos os recantos oficiais do educandário. Desde o começo, os indivíduos são moralmente tidos como levianos, trapaceiros, vigaristas; na burocracia, são colocados a princípio no campo do erro, como prováveis ímprobos. Nossos ritos de passagem no mundo educacional são argumentos de defesa, onde a inversão do ônus da prova assume tons de cláusula pétrea: uma vez postos sob acusação, devemos provar num único golpe que somos inocentes, ou melhor, nesse caso, que reunimos a suficiência técnica para inserirmo-nos no grupelho exclusor dos letrados, separando-nos da imensa maioria não letrada.
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