O CARNAVAL COGNITIVO
- Vicente Cevolo
- 15 de mar. de 2015
- 6 min de leitura

As adversidades básicas nas vidas pública e privada só encontram possibilidade de solução em sociabilidades cuja matriz de inteligibilidade dispõe de algum senso aristotélico de proporções. Quer dizer, usualmente os quebra-cabeças gregários só são realmente montados até o fim, superando a irregularidade de suas peças e os problemas daí advindos, em ordens sociais nas quais existem convenções mínimas, reconhecíveis coletivamente, capazes de conferir padrões mais ou menos nítidos de simetria e dimensão às relações humanas com o espaço, a natureza e o tempo. Em geral, as relações sociais desprovidas da ilusão da “justa medida” são soterradas pela gravidade inconstante dos eventos; formam-se cedendo facilmente ao desequilíbrio inevitável de todo devenir.
Tenho a impressão que a desmedida é a razão capital por detrás da notória inaptidão dos brasileiros para resolver efetivamente problemas primários do viver, seja na vida quotidiana, seja na vida institucional e cívica. Disse razão, e não causa. Causa é uma noção equívoca, pois se associa imediatamente ao efeito, e o efeito, por sua vez, pergunta-se por sua causa, instaurando uma circularidade de sentido inexoravelmente desmentida pela sincronia dos eventos; à contra luz dessa circularidade causalística, a razão, entendida como fator partícipe muito mais do que gerador, é uma noção mais lúcida, apresentando-se síncrona ao evento, substanciando-o, sem causá-lo. Assim, a des-medida societária, ou seja, a ausência de proporcionalidade na medida que anima a inaptidão da razão prática brasileira, conhece razões, e não poucas. Uma dessas razões, com efeito, é a carência completa de mapa emotivo entre nós. No Brasil, o desenho da consciência individual não chega a alcançar o formato inteligível de uma instrutiva geografia das paixões.
Para que se torne conceitualmente relevante, devemos retirar a expressão “mapa emotivo” do terreno das psicologias em voga, do realismo ingênuo, típico do cientificismo, para devolvê-la à densidade filosófica. Na reflexão filosófica canônica - muito útil quando a intenção é analisar as referencias da vida pragmática-, emotividades podem ser entendidas como predicados e/ou qualidades (morais, intelectivas, ontológicas, etc.) que juntos formam a identidade individual. Ao mapear a multiplicidade caótica do próprio emotivo, tornamo-nos interiormente conscientes da dinâmica de cada qualidade (idem), que se mantém e se transforma na entidade que somos (idem-entidade) e edificamos no gerúndio – afinal, como seres livres da rigidez do definitivo, nossa egoiedade existe “sendo”. Noutras palavras, mapear significa conhecer, na intimidade, os predicados fundamentais que formam a totalidade complexa e difusa de nosso próprio psiquismo, e que condicionam o sentido de nossas ações e reações no mundo.
Definitivamente, os brasileiros não possuem mapa emotivo constituído. Nosso tipo de sociabilidade, talvez aquele excesso fenomenológico, próprio de nossa intensidade afetiva, capaz de romper toda noção de limite, e que nos faz vivenciar o presente intersubjetivo como se não houvesse barreira física entre os corpos, impede-nos da fazê-lo. Convivemos numa desorganização cognitiva tal que nossa psique vive em estado de superaquecimento, abastecida por esquemas de sentido díspares, em permanente rota de colisão. Toda essa polissemia de culturas, rituais e poderes à disposição dos cidadãos, acabou por engendrar, através de longo processo histórico, uma desidentidade individual desconexa, incapaz de amplificar-se em parâmetros sociais de pensamento e conduta que ultrapassem a simples condição de regra grupal. A verdade é que no Brasil existe uma pletora imensa de regras grupais que jamais se transformará em parâmetros gerais de regulação, em critérios claros de comportamento e em referências amplas de normalidade social.
Persistentemente invadido pelas desrelações de sentido, quem sempre viveu no Brasil muito provavelmente construiu sua ipseidade de maneira desconexa. Em termos literais, a ausência de uma geografia bem delimitada das paixões põe em cena um sujeito que desconhece os primitivos psíquicos que alicerçam os níveis de sua identidade, em geral, e as camadas de sua personalidade, em particular. Ou seja, nós, brasileiros, não sabemos o que nos provoca dor, a versão trópico-equatorial do carpe diem, sua incitação forçosa à alegria de autoajuda, faz-nos desistir de investigar as motivações profundas das angústias existenciais; os prazeres e gozos são comumente irrefletidos, ligamos o monitor, como os norte-americanos, para comprá-los à prestação; os desejos passados entrecruzam as linhas futuras das expectativas; entre o elogio ideológico da fragilidade na burocracia universitária e o elogio comercial das minorias nas grandes mídias, sufocamos o nascimento do ódio em nós sem sequer sabermos o que é e o papel imprescindível que ele possui em nossa formação psicológica e moral; confundidos diante do confronto implícito entre a publicidade de um país tolerante e as taxas crescentes de violência urbana, comparadas à estatísticas de guerra militar, empobrecemos as valências que compõe a vingança - bálsamo da honra ferida e instrumento de justiça -, reduzindo-a, sem conhecê-la, a mero sentimento vil, ou, então, a jargão de telenovela.
Acostumadas à ausência integral de uma geografia emotiva, que racionaliza ficcionalmente o psíquico, esclarecendo ao si um pouco dos mistérios de sua própria interioridade, as pessoas tendem a naturalizar o absurdo, envolvê-lo em simbologias familiares. Nesse sentido, beira o cinismo a exigência de autogestão bem feita, a critica à desorganização estatal e civil dirigida aos brasileiros. Como queremos instituições sólidas num país em que as pessoas nem sequer conseguem entender o que lhes provoca tristeza e alegria, compensação e frustração? Por mais que os progressistas de gabinete façam vistas grossas, é notório que a diversidade no Brasil atingiu um patamar patológico, proporcionando a fertilidade necessária para a negação de obviedades, interessante ao plano ídeo-politico mandatário, e a aceitação gradual do absurdo como conceito tolerável. Oscilando sem parar entre o dito e o desdito, o não dito assume formas de realidade na federação tupiniquim.
Qual é a consequência disso tudo? Resposta simples: a constituição de um espaço dilacerado por paradoxos e oxímoros, símile ao presente na literatura fantasiosa de Lewis Carroll (de Alices e palavras comestíveis). O Brasil é a terra do coordenador de pós-graduação que não estuda a legislação para coordenar, do comunista liberal, do democrata republicano, do cônsul que não fala a língua da nação por ele representada. Noutro dia, folheando um jornal brasileiro, vi a foto do ex-senador Eduardo Suplicy. Ele estava a caminho da USP, a fim de ministrar um seminário sobre gestão de políticas públicas. No metrô, o registro fotográfico da expressão dos usuários chamou-me a atenção. Pareciam dizer, encantados, em silêncio uníssono: “mas um senador por aqui?”. O senador Suplicy, com seu simpático paletó́ acinturado, à italiana, parecia um alienígena entre anônimos, um debilóide, cuja demência era tentar ser apenas normal, fazendo perceber que numa megalópole de trânsito irracional, civilidade é optar por meios públicos de locomoção. A mesma situação enfrentam os intelectuais, refugiados em guetos de departamento, na confortável condição de “intelecto súpero” em terra de cego, distantes das ruas onde são considerados alienados, ou vagabundos financiados com impostos. O normal é não pensar muito, a reflexão é sinônimo de inutilidade e dor de cabeça, atividade de desocupado. O bom mesmo é aderir ao business, lucrar com commodities no agronegócio.
Mas por quê? Porque no Brasil não se joga, não temos regras claras para jogar. Há carteados, movimentação de torres, aqui a ali, mesas de sinuca, mas nunca jogos. Sem critérios universais de orientação, sem medidas capazes de fazer-nos diferenciar o continente do conteúdo, por mais que estejam em dissolução dialética, quase tudo, independente de seu valor ou desvalor, goza, à partida, do direito à dignidade do conceito; tem que ser aceito sem delongas, incluído sem prerrogativas. Quando quase tudo alcança o estatuto de ser, as coisas confundem-se, não possuem mais significado e referência. Perdem a identidade nuclear que as centraliza. Antes de completar os 360 graus, na defeituosa rotação brasileira o normal pode transformar-se facilmente em anormalidade, a sanidade pode ser considerada loucura irrecuperável, o virtuoso, basbaquice de panaca, a sistematização, neurose de hospício, o pênis, vagina.
O reflexo da desmedida cognitiva e emocional na vida prática do povo brasileiro é absolutamente cruel, um verdadeiro desastre. Ela conduz à “debilitação do impulso à excelência” e à “impossibilidade do fazer”. Se não existem parâmetros inteligíveis, se o superior tem quase o mesmo valor que o inferior, ou pior, se não há diferença substancial entre ambos que permita essa distinção, não temos motivos possantes para alcançar a excelência e buscar a qualidade em nada. Do mesmo modo, se todas as direções são “direção”, sempre haverá divergências e empecilhos entre elas, provocando um imobilismo que nos enraíza. O “jeitinho brasileiro” não faz milagre. Tudo se torna impossível de ser imaginado, impossível de ser concebido, impossível de ser arquitetado e impossível de ser construído. Impossível.
Quando embarcam para o exterior, sujeitos sadios mentalmente não procuram sociedades organizadas de modo excepcional, não almejam encontrar no exterior um recanto de formas platônicas em pleno mundo das cópias e dos simulacros. Antes, procuram a normalidade corriqueira para respirar, a sanidade social indispensável que não encontram nas inseguras esquinas do Brasil. Não obstante, ter saneamento rigoroso, saúde exemplar, transporte intermodal e edições trilíngues nas bibliotecas é que é o normal; os países que os têm, comumente localizados na Europa Central e Setentrional, não são paraísos olímpicos em terra de ímpios, por mais que sejam se os compararmos às nossas importantes, porém, pífias conquistas. Semelhantemente ao “homem sem nome”, do conto parisiense de Mário de Sá-Carneiro (O Homem dos Sonhos, 1913), os brasileiros sonham a vida e vivem o sonho. As democracias civilizadas não gozam de virtudes extraterrenas, são apenas coerentes. Sua consistência está na coerência interna, sua força na identidade bem alicerçada. No fundo, nós é que estamos no “mundo da lua”, na irrealidade insana assumida inconscientemente como presente concreto.
BIBLIOGRAFIAS
SÁ-CARNEIRO, Mário de. O Homem dos Sonhos. In: Céu em Fogo. Lisboa: Ed. Europa-América, Lisboa, 1995, pp. 123-128.
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