O QUE AUSCHWITZ NOS FEZ ESQUECER...
- vicentecevolo
- 4 de fev. de 2015
- 6 min de leitura

O início do século XX corresponde a um parênteses na história, um estado alterado de consciência. Penso que em nenhuma outra época nos distanciamos tanto da “justa medida” aristotélica. Giorgio Agamben sublinhou, com lucidez, o cataclismo conceitual que o começo de século havia proposto sem meios termos à reflexão. Potência atrevida, o niilismo passivo havia inscrito o sentido mais abrupto do substantivo indigência no glossário da razão histórica. Por azar do destino, seu mecanismo de sobrevivência suicida, que condenara a fim autofágico as principais noções valorativas e conceituais que deram substância à inteligibilidade greco-ocidental, engendrou espécimens como Heinrich Himmler, que desconcertaram a volumosa história militar da Germânia, fausta, com seu exercício eliminacionista delirante. O niilismo fizera malabarismos incríveis, desafiando nossos consensos. Produzira homens capazes de condenar corpos sociais inteiros, por meio do ritmo uníssono e meticuloso dos suplícios, à indiferença moral e à autoinvisilidade ontológica até o limite do Untermensch (sub-humano).
A morte de Deus, como previra Camus, não dava nada por terminado. Na sombra do Deus morto soerguiam-se, em revolta metafísica, os desertos de Beckett, suas bocas sem corpos, seus corpos sem orgãos. A razão prática eliminou sistematicamente a subjetividade humanizadora; a razão comunicativa suspendeu a ilusão da linguagem privada; a razão teórica massacrou os fundamentos filosóficos, atraída pela irresistível escuridão dos abismos. O entendimento parecia entrar num ciclo autodestrutivo irreversível. Não para transformar a força em direito e a obediência em dever, como se poderia supor, à revelia de Rousseau, mas por inevitabilidade defronte ao arbitrário e subserviência cega à vontade de nada. Fora um começo de século orwelliano. Sem dúvida, da estética ao direito, da ciência à gramática, as referências foram todas estilhaçadas, a banalidade fez-se rainha. O possível esgotou-se. Entre o minimalismo assassino do primeiro Wittgenstein e pedaços de gente, o período entre guerras revelou ao mundo o significado trágico da palavra distopia.
O início do novecentismo havia, assim, atualizado a pior cepa de valências legada pela cultura moderna, em particular pela historiografia colonialista, pelo eugenismo e pelas “filosofias da força” do século XIX. A implausibilidade incomunicável dos campos de concentração pressionáva-nos no sentido de elaborar uma nova metafísica, compatível com a ausência referencial e consoante à explosão das singularidades, irrefreáveis, a bem dizer, desde a morte do velho Hegel. Diante do fracasso retumbante da antropologia esclarecida, agora era preciso criar sobre a base da fragilidade como nova categoria analítica. Nasce Franz Kafka no universo da literatura alemã e Hannah Arendt nas antíteses do pensamento político.
Porém, o “excesso moderno”, acumulado no oitocentismo, que transbordou e invadiu as primeiras cinco décadas do século passado, jamais deve ser avaliado na condição de contéudo intencional de uma démarche diacrônica. Se o pensássemos assim, forçosamente estaríamos a acionar o diagrama do efeito que se pergunta pela causa, instaurando uma linearidade de sentido que logo seria desmentida pela sincronia da duração histórica, fragmentária. Para ser compreendido, o “condensamento de valências” a que me refiro deve ser distanciado de quaisquer interpretações evolucionistas e abeirado à concepção meinonguiana de objeto.
Para Alexius Meinong, lógico austríaco, a cognição não é a única instância a ter objetos, e objetos não são apenas entidades epistemológicas. Devemos enriquecer a concepção de objeto, isto é, flexibilizá-la, incluindo nela seres de outras classes. Particularmente, como premissas para sua teoria dos objetos (Über Gegenstandstheorie, 1904), Meinong sugere-nos três modalidades de ser. São elas: a “existência” (Existenz), modalidade que agrupa os objetos com vida material, a “subsistência” (Bestand), que nomeia os objetos geométrico-matemáticos (funções, números), e o “ser-dado” (Gegebenheit), que reúne os objetos impossíveis (p.e, os denotados pelos oxímoros: fogo-frio, ouro-prata). Seguindo o fio de Ariadne de seu raciocínio, depreende-se que o globo do que se atualiza, já se atualizou no passado ou se atualizará no fututo, a cada infinitésimo, estará sempre numa razão inversamente proporcional ao que tem ser, mas não se torna coisa concreta. O que nos leva a concluir que a totalidade das coisas existentes é infinitamente menor se cotejada à infinidade de objetos não existentes, embora possíveis, subsistindo em dimensões paralelas, ou então dados nos intervalos entre realidades.
É inegável que o esquema meinonguiano propõe uma estranha dissolução das fronteiras do tempo, imprescindível para análises de processualidade. No presente caótico concorrem objetos que “existem”, outros que “insistem” e ainda os que são simplesmente “dados”. Translocando o raciocínio, isto significa que no evento histórico, atônito, sonhos utópicos misturam-se ao papelório cinza das instituições, e volúpias proibidas, tão somente factíveis, entram em rota de colisão com juízos morais aceitos, fabricados nas esquinas do senso comum. Tudo isto à medida que convivem, no presente, entidades finitas, existentes em ato, e infinitos quase-seres, apenas prováveis. A cada metamorfose de gostos, reforma ética ou curso de revolução tecnológica, o excesso potencial obstinadamente ultrapassa a escassez atual. Esta é a grande lição de Meinong. Não há equilíbrio regulador entre realidade, possibilidade e implausibilidade: a primeira sempre estará em falta e as demais em abundância.
Desse modo, nenhum “acúmulo potencial” gera exclusivamente valências com carga axiológica repulsiva. Há uma disponibilidade virtual inesgotável de latências negativas que se desenvolvem nas rachaduras da realidade factual, atravessando entrâncias sociais, ultrapassando reentrâncias psicológicas. O problema está no que se atualizou, no que se tornou positivo. Na Grande Guerra, o “excesso moderno” atualizou-se na pior forma de contradição. As escalas de força substanciadas nos campos nazifascistas colocaram-nos no interior de um contraditório elo, doloroso, entre racionalidade técnica e categorias humanísticas. Por detrás da cortina ídeo-politica do Deutsches Reich, assistimos, perplexos, o sacrifício dos predicados anímicos e morais do sujeito cartesiano em prol de um “funcionar automático” - eis o sentido nulificante dos campos de concentração -, que eliminava corpos sistematicamente por nada. Confusos, tivemos que linimentar a insuportável dissonância ocasionada pela contradição que o tema envolvia. Com a finalidade de conter sua pressão, reorganizamos as linguagens que pré-figuram os domínios da ação e do pensamento antropológico. Alterou-se, de forma decisiva, as formas estruturantes do perceber e do interpretar. Só que esse ajuste de volume deixou-nos surdos, impedidos de ouvir a vibração das outras valências do excesso moderno. Afinal, não poderíamos correr o risco de abrigar outro “imprevisto monstruoso” na nova sociologia cognitiva em gestação. Diante da incapacidade de governar as ressonâncias da amplitude moderna, foi preciso renomear a íntegra de suas forças com as letras do genocídio hebreu, trancafiando-a na masmorra do esquecimento.
Noutras palavras, aprisionamos o conceito de força no imemorial. Leon Kossovitch criou uma bela definição do conceito. Para ele, força é potência e, simultaneamente, vontade de potência. A potência indica, na força, como a vontade de potência é exercida, enquanto que a vontade de potência registra, na mesma força, a intensidade da potência. No dia em que libertaram Auschwitz-Birkenau, as tropas soviéticas indicaram, na força, como a vontade de potência fora exercida. Na contracorrente desse exercício, perdemos a noção das intensidades de potência da força, confundindo o exercício de certa vontade da força com suas intensidades possíveis.
Lendo mal as intensidades do “excesso moderno”, o homem tornou-se alérgico à distopia novecentista como um todo. Em seu lugar erigiu novamente um ideário utópico, violentamente anti-bélico, no qual o ódio não é mais uma afecção nobre, capaz de tirar-nos da anergia e conduzir-nos à luta versus à covardia que nos impede de viver com dignidade romana. Na socialidade anti-bélica do pós-guerra, o ódio foi empobrecido, tornou-se uma valência única, incompatível com o bem-estar pequeno-burguês, e que só́ pode conduzir à autodestruição do sistema nervoso. Para enaltecer o minoritário, tornar a fragilidade noção digna de nota, caçamos o direito à vingança, bálsamo da honra ferida e instrumento de justiça, no momento em que a reduzimos à mera incivilidade de máfia (la vendetta). Criminalizamos os atos de intolerância que resguardam a ficção da identidade. Para tolerar, assumiu-se, em tom hipócrita, a humildade como o momento mais sublime do orgulho. Abandonamos o impulso insurreto da dúvida niilista, para prostrarmo-nos, nutrindo nossa alma com a substância entorpecente da esperança (a virtude de quem espera). A segurança democrática e a indústria do entretenimento tramaram a decadência do viver afirmativo e a apoteose da vida anônima. Fizeram do homem ocidental padrão de debilidade, incapaz de sobreviver biologicamente por sete dias numa caverna do Afeganistão. A potência positivada em Auschwitz fez-nos esquecer o que Nietzsche já havia entendido há 130 anos atrás: que todo vício tem sua face de virtude, e que toda virtude tem sua face de vício. Ou seja, que só́ há vida plena na promiscuidade das intensidades de força, na polivalência explorada ao limite do risco. O resultado desse esquecimento só poderia ser paradoxal. Vivemos num mundo homicida, estranhamente habitado por uma maioria incapaz de matar uma estúpida mosca.
BIBLIOGRAFIAS
MEINONG, Alexius. Untersuchungen zur Gegenstandstheorie und Psychologie. Leipzig: Verlag von Johann Ambrosius Barth, 1904.
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