OS ALMOFADINHAS
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- 23 de fev. de 2015
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Os romances realistas e naturalistas do século XIX eram plenos de figuras arquetípicas, que refletiam, não raras vezes de modo exagerado e caricaturesco, preconceitos institucionalizados, protocolos e valores integrativos típicos de determinado período histórico. Permeavam os romances as enormes matronas de vila, as sinhás fogosas, o estômago dos clérigos (cemitério de frangos), as candinhas de janela e os ríspidos advogados de pecúlio. Dentre esses conhecidos arquétipos positivistas de folhetim semanal, encontrava-se um personagem famoso por seus privilégios de berço: o “primogênito”, filho benquisto, orgulho dos genitores.
O curioso na história desse célebre personagem era a divisão de sua linha trajetória em duas épocas bem definidas. A temporalidade narrativa era caracterizada por um rito de passagem abrupto, que a dividia em dois períodos. Tínhamos o “antes” e o “depois” de seus estudos superiores na nonagenária Europa. Os primogênitos nas narrativas de Eça de Queirós e Aluísio de Azevedo eram jovens brancos, de fenótipo marcadamente caucasiano, galantes, que retornavam da França, onde eram enviados pelos pais para estudar direito, com sotoque fajutamente carregado, camisas de bom linho belga e etiquetas de confeitaria parisiense. Quem não se lembra do neto querido do fidalgo Don Afonso, o incestuoso Carlos da Maia, que saíra do seu confortável palacete, em Lisboa, para estudar medicina na aristocrática Universidade de Coimbra?
Quando retornara à terra natal, ao casarote do avô, não era mais o Carlinhos, mimo protegido dos criados, o rapazola educado à inglesa, herdeiro do Ramalhate. Havia se “transformado”, como num passe de mágica, no pomposo Doutor Maia, delírio das raparigas e amante das baronesas. Era um prodígio entre a criadagem. Havia se metamorfoseado num semi-deus, que ocupava agora uma nova posição social na ordem lisboeta. Já de início, sem ter atendido um só paciente, tinha até o seu próprio consultório montado. Quando chegou a Lisboa, podíamos ouvir, na cozinha da casa grande, aos alaridos: “Vosmecê viste quem chegou? Carlinho agora é ‘doutô’!”.
Dos calhamaços de capa dura à academia de hoje, tal caricatura oitocentesca parece sobreviver à cadência implacável do tempo, pelo menos no que há de fundamental. Está certo que os tempos são outros. Nosso personagem sofreu mudanças morais e psicológicas profundas. O primogênito de hoje já não veste cartola, está longe de ser um exímio calígrafo, e os bilhetes de amor, amarrados no pendúculo de rosas, cairam em desuso. O manequim de alfaiataria de outrora transformou-se num vulto anônimo, consumidor de costuras padronizadas de franquia. Todavia, algo do seu psiquismo estranhamente mantém-se.
Na universidade estrangeira, a cada corredor que se passa, a cada biblioteca que se lê, podemos sentir, inconfundível, seu aroma de pêra e leite fresco. Indubitavelmente, trata-se de um conceito típico-ideal relevante para análise de conjuntura. Nesse aspecto, não devemos nos deixar enganar pela inocência do contexto “bom mocista” em que se insere, pela sua descompromissada alegria, patrocinada rigorosamente, a cada início de mês, pelo trabalho dos pais. Como se sabe, sua presença cada vez maior na velha academia não representa apenas à decadência da forma latina meritus, em todas as suas declinações, o desdém ao empenho intelectual sólido, não pago. Sua comparência sempre foi um espetáculo garantido. Mas seu atual crescendum, anormalmente elevado, revela a convulsão da própria tessitura institucional, que se vê obrigada a estabelecer medidas descaradamente autofágicas, contrárias aos seus valores mais elementares, para sobreviver à flexibilização destrutiva do mundo europeu atual. Afinal, em temporadas recessionárias, de troika, de escassez de fatias orçamentárias decentes para o educantário, o que sobra do figurino se não buscarem bons clientes e transformarem a sapiência laica em serviço comprado à prestação?
Mas apesar de sua inconteste relevância analítica, gostaria de girar o caleidoscópio. Interessa-me entendê-lo na intimidade, perscrutar um pouco sua aleivosidade psicológica.
A principal característica comportamental de um primogênito é a vaidade. São seres extremamente vaidosos, amantes de vitrines e do que vêem nos espelhos. A vaidade resulta de seus enormes investimentos narcísicos. Em pessoas demasiadamente protegidas das visceralidades da vida, como no caso dos nossos primogênitos, a vaidade e o narcisismo atingem a mais perfeita conjunção. Andam de mãos dadas. Como nos ensina a psicanálise primeira, o compartamento narcisista substancia-se desde três elementos básicos. O ego narcísico precisa apenas de si mesmo, de um espelho refletor e do não-eu. Através do espelho, o eu narcísico não contempla sua própria imagem, o que seria demasiadamente simples e frustrante. É́́ vaidoso, precisa desesperadamente dos outros, gravita entorno deles para escapulir de seu vazio recôndido. E justamente aqui reside a força da leitura freudiana. O que ele vê no espelho, o que provoca o gozo do primogênito narcisista, não é si mesmo, a reflexão direta de seu espectro, mas as diferentes imagens que os outros dele criam. Devemos entender que o ser narcísico não é um eu, mais ou menos inteiro, que se relaciona com os outros eus, espalhados pelo mundo; antes, é uma metade de eu, esburacada, que procura nos outros o preenchimento de seus vácuos emocionais, inanidades morais e lacunas cognitivas. O narcisismo vaidoso é um nível patológico da busca de reconhecimento. O narcisista é vaidoso porque é oco, vão. Se se relaciona com outros como estilhaço, não como inteiro, é um ser heterônomo, escravo das representações instáveis, das traduções distorcidas produzidas pelas platéias da vida social. Sem elas, torna-se exatamente aquilo que é, ou seja, um enorme hiato humano, que se deve evitar a todo custo com doses diárias de fruição efêmera, dependente e relativa. Sua identidade é fundada na mais completa ausência de autonomia e centro de proporção autóctone.
As platéias, massas de manobra do vaidoso, e as operações suscitadas para provocar imagens que satisfaçam seu ego, que conduzirão à satisfação narcísica, são tão diversos como são os tipos de primogênito.
Para os primogênitos mais fúteis, mundanos, a principal platéia é formada pelos mais próximos, com menor poder aquisitivo, ou por qualquer um considerado homo economicus de menor calibre. Sua manobra favorita para provocar boas imagens de si a si, pelos outros, é a exploração da pretensa superioridade econômica e social de quem mora no ambiente europeu. O primogênito é exímio explorador da assimetria entre “colônia” e “metrópole”, interior e capital, norte e sul, pobre e rico. Sua publicidade funda-se num evidência trivial: a metrópole é sempre o oposto assimétrico negativo da colônia. O primogênito goza ao saber que todos os outros, que para ele habitam no pólo inferior, são cientes de que ele habita no pólo superior. Infla-se ao perceber que, na massa encefálica dos ínferos, na sua ordinária ideação, ele, cisne superno, com seu pequeno, médio ou grande poder aquisitivo, com a cultura européia confunde-se. Eu aprecio um aveludado Margaux, acompanhado de uma dinamarquesa sofisticada, ele bebe apenas vinho tinto de garrafão, na companhia da Dona Tetê; eu celebro o Reveillon no La Pergola, em Roma, degustando um salmão delicado, ao molho de maracujá, enquanto eles passam à virada no Piscinão de Ramos, suados, comendo manjuba frita. Nessa dialética autobajulatória de autoaprazimento, o jogo libidinoso das assimetrias não tem fim.
Já para os primogênitos mais “eruditos”, “multiscientes”, “literatos”, a platéia central é constituída pelos mais distantes, com poder argumentativo diverso do seu (considerado menor) e reduzido conhecimento artístico e musical canônicos. Seu estratagema favorito é valer-se de seus gostos supostamente refinados e de sua formação acadêmica, pretensamente superior, para gerar autosatisfação. Igualmente ao tipo anterior, explora sordidamente a assimetria real entre primeiro e terceiro mundos, apenas de modo mais subreptício. Sobrepuja-se ao contemplar-se a si na construção imaginária daquele que é lançado à partida, e sem direito à defesa, no campo do erro, do grotesco, da baixa qualidade, do rude, do menos rigoroso. Tal-qualmente no caso anterior, o jogo trivial das assimetrias forma um ciclo vicioso de auto-compensação e volúpia desguarnecida.
Acoplado à sua gigantesca vaidade, temos a arrogância como segunda característica basilar de sua performance. Mas a arrogância é, ao mesmo tempo, seu calcanhar de aquiles, o buraco de fechadura que nos mostra a fragilidade de seu castelo de areia, mascarado por ternos blasé.
Sua arrogância tem muitas formas. A forma mais hilária é a arrogância linguística. Ao chegar na cidade natal, na casa dos pais, tios e avós, na confraria dos amigos, a coisa mais importante para um primogênito é esconder o conhecimento precário da língua estrangeira do país em que viveu, e demonstrar, simultaneamente, robusto domínio de regras idiomáticas, adquirido a duras penas (e humilhações) na metrópole. Sim, é preciso mostrar-se senhor com àquelas mesmas quinquilharias primárias, de gleba, que adquirem carapaça de “gran ilustração” em suas pirotecnias retóricas, e que os faz derrapar, a quase todo instante, quando estão entre nativos. Obviamente, aproveitando-se da confusão entre língua e idioma, típica do senso comum. Na colônia, dão-nos a entender que são insignes proficientes da língua, apesar de saberem que o que dominam, quando dominam, na metrópole, não é o plurismo semântico ou a aridez morfo-sintática, mas o simples idioma, ou seja, as locuções adjetivas que animam os vivos jogos de linguagem de qualquer camareira croata.
Porém, a função da arrogância linguística não se resume ao seu aspecto autopropagandista. Serve também para mascarar os solecismos mais ordinários, oriundos de má formação básica na madrelingua, e a falta de competências teóricas reais. Afinal, a língua mãe é sempre menos nobre, o chique é a língua estrangeira. Quando voltam aos departamentos de origem é uma verdadeira odisséia. Ouve-se: textos escritos em português são cheios de adjetivos qualificadores, pleno de adjuntos restritivos, não possuem a sinteticidade agregadora da língua alemã, imprescindível “à boa filosofia”. Quanta soberba. Pensam que nos enganam, valha-nos Deus. Acreditam que nunca lemos os críticos de Heidegger ou um Napoleão Mendes de Almeida. Que não sabemos, por exemplo, que se valem, como nós, de frases mais curtas, para mascarar o apedeutismo gramático quanto ao reger verbal e nominal; que arbitram verozmente, em voz alta, numa rodada de discussões elípticas, baseados num mero plágio, feito na calada da noite, de um comentandor polonês que ninguém lê; que preferem escrever textos em outras línguas, mesmo à custa de um vocabulário infanto-juvenil, sem malícia, depois de anos, para fugir do enfrentamento teórico direto, num palco linguístico onde há pouca escuridão para malabares e ínfimos espaços para bons esconderijos. O perigo é grande, pois na própria língua corremos o risco de sermos pegos com os beiços sujos de mel. A falta de leitura de obras clássicas, em inteiro teor, pode transparecer ao meio-dia, em pleno mercado do peixe. A graduação broqueada, feita de fragmentos, pode mostrar-se repentinamente, enrubescendo-nos às maçãs do rosto. A ausência completa de criatividade, a falta de soluções efetivas para os grandes problemas ancestrais, a inabilidade para uma simples interpretação sistêmica, pode chegar aos ouvidos das secundaristas que nos idolatram, pode desiludir o tio-avô na ceia de natal (“Mas ele estudou na Europa!”). Um aluno quase europeu, depois de anos de investimento financeiro dos pais, não pode ser apenas capaz de produz um tratadinho escolar caprichado, fazer esculturas regulares de barro úmido ou tocar apenas o Lullaby, de Brahms, sem erros técnicos grosseiros. Não, não. Não? Ah, se as aparências nos dissessem um terço da essência que escondem...
Mas se a arrogância linguística não se autojustifica, o que dizer então da segunda forma de soberba? Refiro-me à arrogância social, ainda mais fácil de ser percebida. É possível notá-la logo no cais do porto, ou, mais modernamente, no saguão do aeroporto, no esperado desembarque de nosso abastado mancebo. A principiar pelos detalhes mínimos, cuidadosamente reforçados por ele com o intuito de mostrar-se superior ao réles pão nosso de cada dia. Por exemplo, pelo traje esporte-fino, última moda nos bréchos de Paris, ou pelo imobilismo gestual forçado, que freia a espontaneidade latina natural. Todos fatores que consubstanciam o modo “aristocrático” de seu novíssimo ser-de-lá. Aristocrático entre aspas, porque de nobre seu comportamento só carrega a casca, a vontade de sê-lo.
Para compreendermos a natureza desse tipo de imodéstia, faz-se necessário associá-la à difundida figura mitológica da nobreza. A arrogância social firma-se na falácia romanesca de que os estudos na Europa educam nossos sentidos e espírito em todos os aspectos, ensinando-nos boas maneiras à mesa e iniciando-nos, definitivamente, na liturgia do semoto claustro aristocrático e de sua orbe. Mito que evidentemente só convence quem nunca leu uma linha sequer acerca da Casa dos Sforza, quem nunca se deu conta do papel político negativo do cardeal Richelieu, ou ainda das barreiras simbólicas nos reinados bourbônicos. Todos igualmente mortos, presos na rigidez do definitivo. Na realidade, a convivência com a futilidade “qualitativa” dos europeus contemporâneos na universidade, seus namoricos com aldeãs locais em busca da sonhada cidadania, só fizeram com que o nosso dileto primogênito enriquessesse suas maricagens de seio materno, de capitalismo tardio, com frescuras pequeno-burguesas mais aprofundadas, de capitalismo primevo. E isso é claro. Seu novo comportamento afetado não nos deixa dúvida. Como não pensar assim? Nossa fortaleza humanal antes reclamava da locomoção pública sem refrigeração, agora se queixa até das pobres meias de lã, que “pinicam” os pés nas noites gélidas de inverno.
Porém, de Paris a Tremendé, de Coimbra a Pirangussu, o bom filho a casa torna. Raramente fica. Com o passar do tempo, percebem que o que se oferece em Pasárgada é muito pouco comparado as delícias que os aguardam no retorno ao paraíso temporariamente abandonado. O pesadelo de habitar profissionalmente no vilarejo assume outras tonalidades. Afinal de contas, em que outro lugar a “forma falsa” faz milagre, onde é que a “capa protetora” gera concretude por si só? O primogênito, considerado prodígio nas conversas de comadre e gênio criador nas ceias de família, dá-se conta de que, na rica metrópole, amada, ele é apenas uma matrícula esforçada, numa academia ávida por dinheiro, ou um profissional sem sal, na lista infinita dos currículos, ou quem sabe ainda um mulato de segunda classe nas esquinas de Viena. Como no caso do Dr. Carlos da Maia, o paraiso é-lhes entregue na terra natal, e, com ele, os melhores beijos e vinhos. É́ o milagre da multiplicação sem mérito, da donação nepótica, da sombra fresca sem o suor sanguíneo da hombridade romana.
Os mais trapalhões saem de Paris com fama de pândegos embriagados, boêmios sensuais; os mais “sérios” saem de Coimbra com o carimbo de regularidade estudantil aceitável nos diplomas. No máximo, no limiar entre mundos, um bom copista prosaico. Todavia, sem distinção de grau, gênero ou número, ambos chegam em casa como afamados doutores de gabinete, fundadores de escola, ilustrados a la Diderot. Bernardinho, que tropeça nas sintaxes francesa e latina como em cascas de banana, que jamais leu com circunspeção Du Contrat Social até o fim, volta na condição de versado em Rousseau. Apenas pelo simples facto de ter estado no École Normale Supérieure, como milhares de outros pagantes, ao chegar terá o emprego garantido em pouco tempo, a foto no mural das celebridades. Nesse injusto ebó ojukoribi, o almofadinha, rosto anônimo em terra mítica, boneco montado pelos sonhos e pelo cofre dos pais, tornar-se-á rei dos plebeus.
BIBLIOGRAFIAS
Minha convivência com "ilustres" almofadinhas na Europa!
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