A PARANÓIA GERMÂNICA
- Vicente Cevolo
- 30 de jan. de 2015
- 5 min de leitura

A obsessão organizacional dos povos germânicos, sua conduta de vida que pretende formalizar o futuro, é uma das maiores barbáries criadas, naturalizadas e institucionalizadas da história européia. Entenda-se pelo vocábulo germânico o conjunto das culturas nórdicas genealogicamente oriundas da Escandinávia Meridional, que se comunica, segundo a linguística histórica, por meio de alguma variante declinada do primitivo proto-germânico. Ou seja, quando faço uso do adjetivo “germânico” refiro-me às populações da Europa Setentrional (hoje Noruega, Suécia, etc.), mas principalmente aos alemães e ingleses em função de seu histórico poder de influência ideológica e capacidade de difusão cultural em relação aos demais povos germanos no cenário europeu.
Fora do academicismo, devemos entender que a sociabilidade germânica nunca foi uma inteligência antilinear. Por sistema, ainda hoje se fia na ilusão moderna do controle. Sem pudor algum, nulifica o contéudo plástico, mutante e inapreensível do tempo e do espaço, para conjugá-los na combalida forma de categorias racionais, passíveis de controle. A fixação por cronogramas homogêneos e a caça obsessiva de previsibilidade no quotidiano, jungem-se, como cordas em atilho, num esforço lógico comum, que objetiva frear a oscilação dos ponteiros que define o presente. Como? Pretendendo livrá-lo do erro ao se domar, como se doma um cavalo selvagem, a incerteza precária de cada instante seguinte na vida (excessivamente banal, incompatível com seu rigor demasiado). Para isso, nessa sociabilidade, o tempo futuro vêm concebido como se fosse um imenso tabuleiro de xadrez, subdividido em minúsculos quadrados perfeitamente dispostos, com diagonal e altura proporcionais.
Tal formalismo sócio-comportamental está presente na vida dos germanos desde as primeiras cartilhas de alfabetização. Trata-se de uma insânia coletiva na medida em que propõe normalizar, ao invés de regularizar, o caráter desde sempre duvidoso da relação dos indivíduos com o meio-ambiente que os circunda e com a ordem social problemática que os abriga. Excessivos, constituem seu complô higienista esquivando-se à força do risco futuro, ao pretender fazer do “amanhã” alguma coisa semelhante ao “ontem”. O que é explicável, pois se faço do futuro uma repetição do que conheço, isto é, à semelhança do passado, tenho poder de manipulação sobre ele no presente, afinal, só se controla aquilo que se conhece.
Os germânicos são, portanto, grandes entusiastas do tempo agendado e inimigos do tempo imprevisto. O problema dessa lógica é que ela se esquece de um axioma básico, que todos deveríamos aprender, inclusive nos bancos escolares: no complicado jogo da vida jamais podemos ignorar o limite da “não regra”, da grande fatia de destino sobre a qual nada sabemos, cujo domínio não podemos legislar. É-nos negado o privilégio de dar as costas ao implausível de todo amanhã, pois, já alertara Sêneca, o destino guia aquele que consente e arrasta aquele que recusa.
O respeito ao espaço no qual os vetores não se somam e os pontos não convergem é cultivado há séculos pelos melhores jogadores de xadrez. Para compreender bem o que significa, basta observá-los. No jogo de xadrez, quando se movimenta o primeiro peão, naquela deciva fração temporal, apenas se tem uma vaga idéia de meia dúzia de possibilidades de ação adversária na cabeça. A totalidade das jogadas possíveis, sua dinâmica probabilística, é inabarcável para nossa massa encefálica (acomputadorizada). Pressionado pelas incontáveis funções combinatórias e permutações possíveis, o grande jogador não é apenas o que se antecipa às composições enxadrísticas do tabuleiro adversário, tentando adivinhar, taticamente, qual será a próxima jogada. Mais do que antecipar, devemos entender, o grande jogador é aquele capaz de controlar a própria ansiedade por um décimo além, para prevenir-se caso ocorram movimentações imprevistas de cavalos em L, contra-ataques súbitos de bispos pelo meio e de torres pelas lateralidades do tabuleiro, ameçando a retaguarda habitada pelas peças imperiais. Afinal, o porvir é uma perigosa areia movediça, que quase sempre encontra uma maneira de frustar o nosso bom senso.
Por mais experimentado que seja, por mais jogadas que tenha visto, o exímio jogador conhece objetivamente a fragilidade dos estratagemas racionais, intui sua demasiada estreiteza para abarcar o oscilar espermático da realidade. Ele sabe que existem lances que driblam sua percepção restrita e ultrapassam sua humilde capacidade de previsão. No xadrez é preciso ter paciência, a virtude de esperar a vinda certa do incerto. O xeque-mate legítimo, se vier, deve ser em razão da superioridade da estratégia adversária, a surpresa deve ser evitada pelo arco-reflexo, filho da prudência. O grande jogador, o verdadeiro enxadrista, portanto, leva a serio o mais imponderável no acaso ofertado pelo futuro.
Não quero negar com isso a existência e a importância das regras. Evidentemente, não há um único ser racional que viva sem seguir regras, não podemos viver sem padrões de regulação que conjuguem o sentido difuso produzido na linguagem e na ação. Todo jogo, incluindo o jogo da vida, organiza-se desde um certo número de princípios, a própria explicação da regra pressupõe o seu uso (Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 1953). A regra primogênita de todo jogo, gênese de todas as outras, é óbvia: ao exercício do jogo antepõe-se um conjunto de regras. A função desse conjunto de prescrições, bem pontuado e pré-acordado, determina a segunda das regras: a partir do conjunto de princípios gerais dividimos o espaço futuro em hipóteses plausíveis. À segunda regra segue-se uma terceira: as hipóteses, estabelecidas pelo conjunto de regras, que dividem o futuro em possibilidades conhecidas, extraídas do passado, organiza o exercício do jogo, estabelecendo um diversificado número de jogadas. Da prática deste conjunto de jogadas segue-se, por fim, vitória ou derrota (quarta e última regra).
Mas no xadrez da vida, a verdade está no implausível. O limite da não regra sempre vence no fim à medida que contamina todos os lances do jogo. Diferente dos jogos formais, onde se pode brincar com as mesmas peças e regras, a instabilidade futura pode suscitar a qualquer momento o inaudito e despertar a aleatoriedade. Deleuze (Logique du Sens, 1969) assevera com acerto que em todo futuro encontramos mais rostos anônimos do que feições familiares. Sublinha que o porvir pode ultrapassar, sem dar a mínima satisfação, o conjunto de convenções que precede e torna possível o exercício do jogo, eliminando semelhanças e dilacerando identidades, extraídas da constância de fatos e experiências vividas no pretérito, por meio das quais projetaríamos nosso futuro no presente. O adversário pode inventar suas próprias regras, podendo mudar de regra a cada novo movimento até o limite da não regra, onde os códigos do jogo se confundem, tornando os seus significados gradualmente ambivalentes.
A intelingência social não deve ser avaliada apenas pela capacidade de síntese de um povo. A verdadeira inteligência é inventiva, e a invenção só se dá quando nos permitimos o encontro com “o inédito”. A sensação é que o germanismo hodierno produz matérias prontas. Combinações de regras, sem a ameaça do futuro, que já se encontram prontas antes de nascer. O que evidentemente é um problema, pois toda obra pronta antes de nascer, recorda-nos Clément Rosset, é uma obra morta. A organização irrefletida, produto de séculos afundados no hábito do controle, eliminou a experiência do inédito no mundo teutônico. Seu intelecto criativo estagnou, cedendo lugar a uma população ventriloqua de manuais, altamente frustrada e enorme consumidora de psicofármacos, fadada a recontar, com a precisão tediosa dos relógios suíços, o triunfo wagneriano de seus mitos em épocas aúreas.
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