O FORDISMO PÓS-DELEUZIANO
- Vicente Cevolo
- 1 de jan. de 2015
- 3 min de leitura

O crescimento sem fim é sintoma de fratura. Sem sombra de dúvidas, trata-se da ansiedade mais eficaz para atingir-se a catástrofe. Sou a favor da redução drástica do financiamento público direto à reflexão teórica porque creio ser a única solução para frear o produtivismo literário, filosófico e humanístico em voga. Precisamos de um trauma que nos desvie do regime idiota das metas. Uma vez mais falta-nos, na universidade pública, a mentalidade bélica, capaz de descarrilhar o vagão.
Reconheçamos. O pensamento da différence, a analítica do événement, envelheceu. Tudo envelhece. E, como todo ansião que habita o pôr do sol, o pensamento da diferença representa um desequilibrado acúmulo de compensações e frustrações. Seguramente foi vitorioso na forma açucarada dos experimentos estéticos e malabarismos intuitivos. Aprendemos a retirar a morte das sombras do impressionismo, para enxergá-la na visibilidade do dia, nos amarelados campos de trigo de Van Gogh, na sua vivacidade enlouquecida. Até que enfim encharcamos o niilismo com sangue humano. Aprendemos a dar voz às particularidades inconfessáveis dos amantes, àquelas sujeiras debaixo das unhas, tão apreciadas por Foucault e pela juventude de sua época. Foi uma embriaguês incrível. O vinho dionisíaco elevou-nos à alcova dos deuses, para lá descobrirmos o seu escoderijo mais secreto, suas passionalidades e práticas orgiásticas até então proibidas. O olimpo finalmente tinha cheiro de terra.
Infelizmente, no dia seguinte, o grau etílico evaporou-se. Depois da bebeira, a segunda-feira de manhã lançou-nos novamente na crueza da vida pragmática, na ficcionalidade de nossas instituições. Implacável, a ressaca mostrou a outra face do pensamento enaltecedor da différence. No espelho, revelou-nos a farsa de sua proposta de revolução qualitativa. O pluralismo de 1968, sua metodologia que dá liberdade a todos e a qualquer um, que dissolve a identidade metafísica, que confere dignidade primeira à contingência excluída, surpreendeu-nos com seu contrário, exatamente no meio que o substanciou. Eles apostaram alto, nós pagamos um preço ainda maior. O tiro saiu pela culatra. O enaltecimento da singularidade levou ao crescimento descontrolado da quantidade, independentemente do que ela é. Não há potência significativa, o valor está nos predicados móveis e relacionais. Ficamos alérgicos ao hierárquico, tudo tem seu valor.
Na produção acadêmica, à contra luz do expectado, não conseguimos alcançar a variabilidade de pensamento fomentada. Com nossos experimentos de pensamento, conseguimos implodir, paradoxalmente, a própria originalidade. Como? Reproduzindo, na combalida escala de proporção fordista, simplesmente o ‘mesmo’ criticado.
O que é a vida, não? Apostamos nossas fichas na finitude, igualamos horizontalmente o que é descaradamente vertical. Confundimos os sexos. Pela primeira vez na história, levamos em consideração a fragilidade como categoria ontológica. Jamais me esquecerei de uma frase de Deleuze, pronunciada com sorriso malicioso na TV (L'Abécédaire de Gilles Deleuze, 1988-1989), que sumaria tudo isto. Confessa: “Agora sim vejo gente de verdade!”. Frase maravilhosamente antiidealística, indubitavelmente herética.
Entretanto, apesar da frase estimulante e da vontade que ela porta em si, não chegamos as tais "deformações sem modelo", que era o mais essencial da história. À revelia de Platão, criamos apenas uma poderosa maquinaria, platônica, de fotocópias imperfeitas de meia dúzia de doutrinas. Afinal, não é exatamente isto o que temos no cardápio de hoje? Materiais para financiamento ao invés de textos reflexivos de bons cérebros financiados? Uma produção serial infinita de catálogos, preenhes de notas de rodapé, para gavetas empoeiradas? Todos podem fazer uma tese, basta seguir o metiê. No universo do papel e da pena, hoje em dia não assistimos ao espetáculo da revolução qualitativa, capaz de metamorfosear nossos sonhos, de envergar o lombar do conceito, de fazer pulular o ordenamento social. Contemplamos apenas a catástrofe quantitativa, produtora de uma cascata de idiossincrasias (sem leitor). Quem diria que o empedernido Ford renasceria das enrabadas de Deleuze, que Taylor sairia, intacto, das violentas marteladas de Nietzsche. Que miséria, meu Deus, que fortuna miserável. Tantas genealogias, arqueologias, perspectivismos, complexos, formas de não integração, para culminar apenas nesse pacato onanismo.
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