AS DUAS ORIGENS
- Vicente Cevolo
- 26 de jan. de 2016
- 28 min de leitura

Texto juvenil, segmento de monografia, pleno de excessos retóricos, equívocos conceituais e ilusões típicas daquela época em que imaginamos que o tempo é infinito e que o mundo se submete aos caprichos de nossos desejos.
(O autor)
Introdução
No capítulo precedente tentamos articular, através de densos cúmulos metafóricos, uma pletora de cacos irregulares e inessenciais, esfacelados pelo chão, feito estilhaços de uma frágil porcelana inglesa que acabou de se partir. Tentamos juntar, um a um, farelos de significado com nossa velha piaçaba, espalhados ao redor de uma grande mesa surrealista, composta por pés tortos e com o jacarandá já empenado. Ao girarmos o caleidoscópio sobre o chão, visando contemplar as diversas tonalidades policromáticas que recobriam a sua extensão naquele momento, fez-se vento. Os fragmentos, por assim dizer, espalharam-se incontrolavelmente pela casa; os cacos divergiram por toda parte, e as migalhas mudaram novamente de forma. É aí que se nota o quanto falhamos. Ao invés de sistematizarmos a multiplicidade de cacos de significado e farelos de significante, harmonizando-os na coerência saussuriana de um mesmo sistema, para trazer à luz a genealogia, acabamos por reinventar a noite sem escrúpulos que os cuspiu.
Substanciamos, sem dúvida, a história de um erro [1]. Inquestionável e produtiva falha, que obteve como télos de nossa desmedida procura por ligações estáveis e unidades autopoiéticas de uma química originária que imaginávamos formar o núcleo lógico-racional da substância genealógica, a alquimia polissilábica, inerente à economia feiticeira das antinaturezas. Em outras palavras, ao nos perguntarmos de que espécie de luz sem sombras [2] surgira certa versão prematura da genealogia nietzschiana, acabamos por encontrar, por vias oblíquas, como nos delírios de Rembrandt, a terrível noite boreal que a compõe e que a gerou. Cabe agora nos indagarmos, então, que tipo de treva é essa de onde o êxtase genealógico saiu e, por conseguinte, para que tipo de mefistofélica noite ele nos levou...
Ao longo do processo de elucidação dessas duas questões resumidas acima, aparecerá, naturalmente, nossa interpretação da natureza e dos propósitos do experimento de pensamento genealógico enquanto tal. E, no redimensionamento da estrutura formal dessa principal questão, incorporar-se-ão algumas indagações periféricas, marginalmente vinculadas ao tema, embora não menos importantes. O “que se chama ordinariamente história”? [3] Por que, de fato, designa-se a genealogia como analítica do “sentido histórico” [4]. E, por fim, o que significa e qual é a importância cabal resguardada na proposição que afirma um “sentido histórico” renascido ao transcender a “metafísica para vir a ser um instrumento privilegiado da genealogia”? [5].
Três perguntas aparentemente contíguas a uma questão basilar, que poderiam ser sumariadas, sem déficit teórico, numa única e difícil proposição, a saber: o que faz da genealogia uma analítica do acontecimento? A resposta a esta subsunção, que surgirá da alegoria das duas origens, fornecerá um elemento, senão decisivo - pois teremos que inevitavelmente negligenciar algumas nuanças -, pelo menos importante no debate acerca do esclarecimento da “definição” e das relações entre genealogia e história e, principalmente, dos inúmeros estados aporéticos daí advindos.
Para completar este parágrafo propedêutico, uma última precisão ainda é necessária. Nossa investigação baseou-se numa “definição” específica do problema da genealogia em Assim falou Zaratustra, dentre as muitas possibilidades que lá encontram morada. Assim, não nos preocupamos ex professo em delimitar as outras formas de genealogia (e de sua contraposição aos modelos supra-históricos), presentes no pensamento tardio de Nietzsche. Nossa reflexão se manteve aquém destas interrogações. Se por vezes foi forçada a tangenciá-las nalguns momentos, foi sempre en passant, no intuito de satisfazer às exigências rigorosas do problema mais primitivo que nos atormenta.
1. As Duas Origens
Os primeiros contornos da genealogia começam a adquirir forma exatamente no momento em que nos desfazemos de um nó secular, confeccionado a partir de duas cordas, compostas por diferentes matérias-primas, e que apontam para diferentes domínios. Em cada uma das extremidades desse nó, segurando a ponta da corda que lhe diz respeito, está posicionado um carrasco. Precisamente como aquelas velhas imagens sem fisionomia, que não conseguimos contemplar por mais força que façamos, esses carrascos são seres sem feições definidas [6]. Seres que identificamos pelo inchaço excessivo dos nervos dos braços e pelas sombras refletidas no translúcido que os envolve. Puxando com mãos de ferro as duas cordas jungidas num nó complexo, os carrascos, no ritmo uníssono e meticuloso dos suplícios, dilaceram o corpo ofegante dos séculos, representado pelo cadáver do Deus cristão.
A primeira das cordas que sustenta esse nó é firme e vigorosa. Reunião de ligas de cânhamo ou de qualquer outra matéria filamentosa, este conjunto torcido de fios, em espiral, forma uma consistência única, quase que inquebrantável. Tentadoramente segura, ela parece prometer estabilidade eterna à sintaxe trêmula dos indicativos, conjuntivos e imperativos dos verbos, oferecendo-lhes a incondicionalidade demagoga gozada pelos infinitivos, gerúndios e particípios (modos não finitos). Todos expressões linguísticas variegadas de um mesmo finito, não menos linguístico, que não aceita a si próprio, e que o faz com razão. De certo modo, menos pela não aceitação de sua estrutura finita, que exigiria um desdobramento ilusório de sua finitude ao infinito (supostamente para livrar um ínfimo de sua identidade da morte [7]), e mais pela “dúvida de si mesmo”.
Para utilizar uma expressão de Tolstói, essa corda é um verdadeiro esqueleto no interior de um armário. É a principal carta escondida na manga das modalidades sublimadas da vontade de potência. Através dela a egrégia esfinge - apenas um dos inúmeros pseudônimos para designar o carrasco aparentemente mais forte - parece arrastar, no lodo dos séculos, os regimes de pensamento, as práticas sócio-históricas e os rituais ídeo-políticos em direção a Segor da “verdadeira veracidade”. Precisamente como no versículo bíblico [8], trata-se de um paraíso terreno ardentemente ansiado, livre dos flagelos e da devastação anunciada alhures que recaíra sobre a cidade dos ímpios pela coragem prometéica de seus habitantes ao denunciarem a farsa da criação de um esteta platônico, cego pela escuridão absoluta da luz. Neste êneo elã da metafísica, cujo monarca lê Platão, a energia imanente e luminosa da circularidade caótica adquire sobriedade nos descaminhos de Hermógenes e nas bifurcações sofísticas enfrentadas por Crátilo [9]; seus súditos, acostumados a um regime espiritual diário de frugalidades, rico em elementos de reconhecimento, identidade e autoconsciência [10], embriagam-se, indefinidamente, no líquido da prudência a cada cálice ingerido na morada de Agathon [11].
Do outro lado, atada a dita junção, encontra-se uma tenra corda que aponta para um precipício. Vê-se facilmente, pelas características negativas de quem a puxa, que não se trata de um mero e inglório algoz. Antes, é o próprio vulto da morte que lá está. Cega e com mãos de ferro, como Ananke [12], conduz o acaso igual ao destino pintado pelas tintas de Sêneca, guiando o que consente e arrastando o que recusa [13].
Mas por que invocar aqui a efígie da morte como membro impreciso desse cabo de guerra dantesco que nos compele para a mais rarefeita das atmosferas? A resposta é “simples”. A morte é a única parábola capaz de questionar efetivamente a noção de corpo, vinculada a idéia de um eu-pronominal, enquanto receptáculo da identidade do sujeito. Isso simplesmente porque a morte e o abismo de que falamos se co-pertencem. Estabelecem entre si uma cópula ao mesmo tempo trágica e dialética, em que a morte e o pélago são como o si e o ser no momento da liberdade absoluta [14]. Epílogo em que, na substancialidade serena da vida pura e nas periclitantes silhuetas da linguagem do ser, o si surpreende, metamorfoseada, a sintaxe de sua própria alma; e na liberdade abstrata da vontade pensante [15] ou na ingenuidade nadificante da absoluta certeza do Eu [16], coexistentes na singular linguagem do si, o ser encontra, travestida, a morfologia de seu próprio espírito. Nesse sentido, a névoa que obscurece o semblante da morte é a mesma que eflui do coração do abismo, pois a morte é o já-está-aí do próprio abismo [17], este precipício para o qual tende o pensamento greco-ocidental.
A morte aqui expressa o miraculoso dia em que o senil “repouso translúcido e simples” [18] das conhecidas alturas incorpóreas descobre, ao amanhecer, que seu onírico sono dos justos nada mais era do que uma forma travestida da embriaguez dionisíaca. Aquele que sempre se imaginou vivendo, durante as longas noites frias e os curtos dias quentes de sua existência, ao lado de companheiros fiéis [19], respirando amor e poesia, encontra-se agora defronte ao espelho [20], como que traído por si.
Logo ele, o mais sóbrio dos anjos celestiais.
Com a imagem de seu rosto desfigurado pelos vapores etílicos do devir furioso, de que sempre fora feito e nunca o soube, dia virá em que o sereno banquete angelical do misericordioso e de seu cordeiro imolado revelar-se-á, para si mesmo, a mais plena e emasculada festividade histórica, animada pela ancestral animosidade do “delírio báquico”.
Logo ela, a mais mundana e carnal na hierarquia dos êxtases.[21].
Simbolizando, assim, a ausência absoluta de certa espécie de noção de corpo, a morte ostenta, em seu lugar, um centro ausente [22], composto por uma multiplicidade de “vozes” anônimas e antinômicas - que se norteiam por orientações simultâneas e arbitrárias. Orientações persuasivas, que instauram a ilusão de que essas vozes criam campos plurais de sentido. O que não procederá em última instância, pois, como veremos, essas ausências estabelecem séries exaustivas, “afirmações e negações simultâneas, invalidadas à medida que se formulam” [23], capazes de eliminar, uma a uma, as significações e os mundos possíveis no mesmo instante em que os cria.
Esse sorvedouro insaciável é como que a masmorra da morte. Através de um macabro revezamento, para lá Tânatos e Perséfone arrastam, ritmadamente, a totalidade dinâmica de significados, viabilizadora das forças propulsoras da semiose e da própria possibilidade de sentido dos campos de experiência, cognitivo-históricos, do mundo ocidental. Ou seja, resvalando por entre os pedregulhos desse penhasco tropica o crânio do Deus morto, bem como os destroços de seu corpo formado pelos sistemas de razão e, por conseguinte, pelos modelos de representação que se lhe antepõem.
O terceiro movimento do Inverno de Vivaldi [24] retrata com maestria esse momento. Ele simboliza o estertor impetuoso e apaixonado que anima a pugna entre todos os ventos. No inverno de nossas almas, apesar do doce fundo de esperança que permanece, o reencontro dos ventos setentrionais representa a aproximação de um momento de profunda interiorização, que nos prepara para um destino incerto. Desfeito o imenso clarão aniquilador das espadas e das chamas, resta-nos o silêncio cortante das sombras vazias [25], que torna os homens criaturas preciosas e patéticas [26].
Mas os violinos que orquestram o Inverno de Vivaldi não tocam indefinidamente, e a luta entre todos os ventos chega um dia ao fim. Em Le quattro stagioni [27], a morte sai vitoriosa. Como Agamenon sobre Tróia, ou, então, o deus criador dos órficos, Fanes, sobre o ovo primordial, onde estava contido o mundo antes de sua união com a Noite, o inverno é senhor sobre a fecundidade do verão, sobre o florescimento da primavera e ainda sobre a maturidade do outono. Todavia, a peleja entre Deus e a morte, da qual originalmente tratamos, é um pouco diferente. Apesar da hegemonia da morte também se fazer presente aqui, sua vitória não é definitiva. Sua testilha com Deus jamais tem um fim.[28]
Na torção latente entre as duas cordas, vimos que Deus se confunde com Segor, assim como a morte se confunde com o abismo. Mas por que a morte (abismo) arrasta Deus (Segor) para si? Qual o significado mais conveniente que a metáfora do cabo de guerra comportaria? [28]. Talvez a resposta apareça na tentativa de fazer florescer um marco mais profundo do enigma que surge da sodomia entre essas duas “metralhadoras em estado de graça” [29].
Evidente que, como parte visceral de nossa condição, a ideia de Deus igualmente revela-se atravessada por uma contradição inerente: sua démarche é simultaneamente precária, porque impossível, e preciosa, porque necessária. Precária: exatamente como as cadeiras de nossas mesas ou o lixo de nossas unhas [30]. Possuindo semelhante grau de ser ou estatuto ontológico desses e de quaisquer outros objetos, conceitos, valores, sonhos, paixões, esquizofrenias e delírios, Deus é um nada que subjaz à ordem das criações estéticas, essas “construções suntuosas também feitas de nadas” [31]. São (precisamos crer!) precárias necessidades da gramática moral niilista, escritas em sangue sobre a impetuosidade do acaso, e advindas do universo fictício da metafísica das orações subordinadas, sem sujeito ou período principal.
Por outro lado, Deus é, paradoxalmente, a mais preciosa das ambrosias. Uma imagética estritamente negativa e irreal, ao qual se atribui um terrível valor de verdade e ser. Um pesadelo sombrio, aparentemente tão ininteligível como as trevas de Hades, deus supremo dos infernos, que nos aparece, num piscar de olhos, tão presente e intenso em nossas retinas como os raios de luz na áurea crepuscular. Trata-se de um híbrido que trespassa livremente entre as superfícies lisas e instáveis do ser e do não-ser, sem pertencer a nenhuma delas, escapando de todas elas pelas bordas de mãos que legitimamente almejam, em nome da morte de uma segunda natureza (lógica), criada para retirar o sentido da vida (fisio), sua preciosa cabeça.
Sob os auspícios de certo ângulo interpretativo, trata-se de uma coalizão de signos linguísticos complexos [32], mas não de uma simples coalizão. Estas pré-noções valorativas, conceituais e ontológicas pré-figuram, enquanto distintas condições de possibilidade moral-ético-religiosa, espistêmico-cognitiva e onto-teológica, os sistemas de razão e os regimes de pensamento niilistas da tradição, sejam eles negativos, reativos ou passivos [33].
Deus fora o grande doador de sentido da cultura medievo-moderna, das pinturas barrocas de Velázquez ao romantismo de Eugène Delacroix. O principium máximo da determinação completa (não só das teologias racionais), i.e, “o princípio da síntese de todos os predicados que devem formar o conceito completo de uma coisa” [34]. O absoluto, intrínseco à natureza da ordem divina, personifica o conceito de “inteira possibilidade”, ou seja, o conjunto de todos os predicados possíveis de uma proposição. Nesse sentido, cada coisa só se eleva à categoria do possível “derivando a sua própria possibilidade do seu grau de participação naquela inteira possibilidade” [35], como uma limitação ou uma negação (que não deixa de ser uma forma de limitação) da completa possibilidade ou da possibilidade em si mesma.
Deus fora a grande fonte doadora de sentido que estivera por trás da colcha de retalhos constituída pelos sistemas de razão que desvalorizam a vida. Como veremos, ao desvendarmos os mecanismos da genealogia, Deus e os sistemas racionais niilistas a ele anexados (níveis distintos da interpretação, cujo elemento genético é a vontade de potência), desvalorizam a vida porque se pretendem verdades regulativas absolutas, “superiores”, conceitualmente, e “anteriores”, cronologicamente, ao corpo semântico, caótico-condicionado-condicionante, que fundam e do qual participam.
2. A escuridão absoluta da luz nos jardins de Segor. A metafísica da origem e seus três postulados
Já a ideia de Segor representa os contornos de uma origem. A origem (Ursprung) [36] solene, irresistivelmente desejada pela vontade de verdade e objeto de sua obsessão ancestral, cuja fobia reside na possibilidade efetiva de ser excomungada pelo único.[37]
Tal simulacro compõe-se desde três postulados basilares. A origem como a caixa de pandora das essências; a origem como o relicário monástico que resguarda a delicadeza da pureza originária; e, por fim, a origem enquanto lugar da verdade [38]. Três estratos distintos, mas que no fim acabam por se consubstanciar.
2. 1 A origem como caixa de pandora das essências: formação da identidade ou dissimulação do caos sígnico sob a versão aristotélica do τὸ τί ἦν εἶναι
No que concerne ao primeiro estrato, a origem mostra-se como o recinto das essências. Para dissecá-lo, e, com efeito, evidenciá-lo em seus pontos decisivos, faz-se necessário refinarmos, analiticamente, a noção de essência mesma. No contexto em questão, o que deveríamos entender por este substantivo? Evidentemente, poderíamos fazê-lo de diversos modos; filtrá-lo ao sabor de diferentes crivos. Fá-lo-emos, no entanto, por meio de um breve estudo de alguns elementos da doutrina aristotélica da substância.[39].
A noção de substância (οὐσία), em Aristóteles, é uma palavra ambígua, pois possui um uso primitivo e outros derivados. Nesse aspecto, tal palavra deve ser pensada como concomitantemente próxima e longínqua da acepção platônica conferida ao verbo ser (εἶναι). Na acepção primitiva, ser significa “realidade verdadeira” (no sentido de εἶδος). Em termos filológicos, a noção aristotélica, sem dúvida, preservou em sua cápsula o traço semântico associado à palavra substância; mas, diferentemente da noção primitiva, restringiu o conceito de ser como realidade verdadeira somente a uma categoria de coisas, ao mesmo tempo em que enriqueceu a noção de substância, para além do sentido primevo conferido no interior dos muros da Academia.
Aristóteles separa nos seres aquilo que é substância (οὐσία), que não se diz de coisa alguma e se fixa a si própria, daquilo que se diz da substância ou se constitui a partir de sua pré-existência ontológica, i.e, os predicados ou modalidades de ser não substanciais (κατὰ συμβεβηκός).[40]
A noção de substância aristotélica [41] é uma resposta metafísica clássica, ressoada ao longo do concreto armado de muitos sistemas modernos do pensamento niilista. É um posicionamento ante a arcaica antinomia estabelecida entre a unidade e a multiplicidade [42]. Diante dessa antinomia, o corpus aristotélico oferece definição de ser como algo dito de múltiplos modos (πολλαχῶς λεγόμενον) [43]. Todavia, dito sempre em relação a um único termo, a uma única natureza, e não de maneira equívoca [44]. Sabe-se que são quatro os modos de se dizer [45] o ser: "ser por acidente"; "ser por si"; "ser como sinônimo de verdadeiro"; "ser como ato e potência" [46]. A substância, nesse sentido, é o ente metafísico (exclusivo termo e a única natureza) responsável pela unificação dos múltiplos modos de se dizer o ser.
Em termos silogístico-analíticos, a substância é o sujeito último das cadeias de predicação, que não pode ser predicado de nada. [47] À revelia dos predicados acidentais, que não exprimem o que é o substrato (τί ἐστίν), e que devem ser atribuídos a um sujeito outro que não eles mesmos [48] para serem concebidos, a predicação substancial “significa alguma coisa que é um substrato, ou seja, alguma coisa que se concebe sem que se deva fazer apelo a uma outra realidade do que ela mesma” [49].
Chegamos aqui a uma definição possível de substância, a saber, ser no sentido forte do termo. Ser enquanto subjacência (ὑποκείμενον). Contudo, ela é-nos ainda insuficiente e imprecisa, pois corresponde a um dos aspectos que definem a ossatura interna do “conceito” de substância, e não a substância em sua totalidade visceral [50]. Para que nos seja útil, precisamos delimitar as demais características qualificadoras da substância, e, dentre elas, a que define sua essência. Ou melhor, a que a define como essência, ou seja, a substância vista sob o ângulo da essência.
Em seguida, anarquizaremos a tese aristotélica da realidade ontológica da substância, considerando os traços basilares que a constituem como portadores linguísticos sem veras subjacente. Com isso, voltaremos a nos reportar, então, ao primeiro postulado da origem como essência significativa.
Em Z, temos uma análise pormenorizada das diferentes pré-figurações do termo substância no lógos pré-socrático. Deste extrai-se, por conseguinte, os supracitados quatro sentidos cardinais de substância. São eles: a quididade (τὸ τί ἦν εἶναι); o universal (καθόλου); o gênero (γένος) e o sujeito último de atribuição (ὑποκείμενον).[51]. Destes quatro candidatos para o cargo de substância, Aristóteles refuta o universal e o gênero, casos seguramente mais afins ao platonismo, e interessa-se pelo sujeito de predicação, em especial, e pela quididade, em particular.
Mas, como vimos, o subjacente de atribuição é um conceito demasiadamente devoluto. Vago. Seguindo a vereda de uma engelhada pirotecnia filológica, esse termo deve ser pensado em consonância com outros dois que lhe são equivalentes, apresentados no livro Δ [52]. Trata-se dos juízos subjacentes a χωριστόν e a τόδε τί que completam o quadro até então insuficiente e impreciso da formulação de substância, vista sob o ângulo parcial do sujeito de predicação. A primeira delas, χωριστόν, precisa a substância como sendo, parafraseando a terminologia de Categorias, uma forma primeira, que jamais pode ser separável. Portanto, χωριστόν é o que está separado, o que pode existir sem outrem [53]. Já a noção segunda, expressa pela locução τόδε τί, dá ideia de um “este algo”, ou quem sabe de um “algum isto”. Pensar a substância mediante a dição “este algo” significa tê-la na conta de um ente absolutamente determinado e subsistente. Ou seja, uma forma determinada, uma “identidade cuidadosamente recolhida em si mesma”, i.e, uma “forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo” [54].
Copulando as duas últimas particularidades, definidoras da substância, com seu significado primitivo, herdado do platonismo, obtemos, com efeito, o conhecido récipe que a define como ser positivamente determinado, subsistente e completamente autônomo, absorto em si e introverso para si. E se seguirmos, em igual ritmo, o filão complexo da trama ontológico-linguística proposta pelo mestre do Liceu, reincidiremos, uma vez mais, na tese de que os variegados modos de se dizer o ser são como que forças centrípetas, unificadas por um centro presente onde reina, absoluta, a substância.
Falta-nos, agora, para completar totalmente a infra-estrutura da fundação da noção aristotélica de substância, dizer qual é o ser da substância. Ou, em termos menos wagnerianos, apresentá-la sob as vestes de seu foro mais íntimo, segundo a perspectiva de sua essência (τὸ τί ἦν εἶναι). A quididade absoluta (essentia) é uma característica exclusiva da substância. Os acidentes, por assim dizer, expressos pelas predicações heterônomas, não a detém, possuindo somente uma quididade de natureza relativa, pois o sentido de sua formação ontológica depende da recorrência a uma potência semântica imperativa e anterior.
As categorias segundas, que constituem os diversos modos de ser aristotélico, “apenas” dizem, desse modo, como é que é isto que é. A autêntica quididade, inerente e idêntica ao ser da substância, não nos diz como as coisas são, avalizando sua qualidade, quantidade, relação, ação, paixão, tempo, posição e posse. No revés, ela nos diz precisamente o que é intimamente esse ser determinado, subsistente e que goza de independência ontológica. Ou seja, o que é que é isto (ou “este algo”) que é. A id-entidade: o que se mantém constante (idem) na coisidade (entidade).
2.2 A origem como o relicário da pureza: formação do reconhecimento ou a dissimulação do caos sígnico sob a versão kantiana da unidade de apercepção
Parece que já dissemos o suficiente sobre isso. Cumprido o percurso que delimitou tecnicamente a raiz filosófica da palavra essência, voltemos, então, enriquecidos, à nossa questão primitiva. Às nossas obscuridades.
Para elucidar a natureza antimetafísica da genealogia e a sua tensa relação com o sentido histórico, havíamos proposto, no interior da alegoria das duas origens, duas questões interdependentes. Por que razão a morte, sinônimo de abismo, arrastara Deus, sinônimo de Segor, para si? E qual o sentido conveniente para justificar a existência desta parábola? Dessa equação vertiginosa, cogitou-se que emanaria, assim, uma possível resposta.
Nesse ínterim, descobrimos que os limites de Segor representam a origem secreta (Ursprung), desejada pela vontade de verdade, e composta por três postulados básicos, que compõe uma arquitetura supostamente harmônica. Passamos, então, a descrever a morfologia e a organização metabólica do primeiro de tais postulados, o que a define a partir das injunções axiomáticas da substância. A origem, então, nos apareceu como essência, só que através de uma lente para míopes. Por isso, ao tentarmos reencontrar tal instância, lá testemunhamos “’o que era imediatamente’”, “o ‘aquilo mesmo’ de uma imagem exatamente adequada a si”, nos termos tratados anteriormente. Como na problemática ontológica sobre o que é ser (ti£ to/ oÃn), para obtermos uma resposta que, por mais crítica que fosse ao modelo representacional, onto-teológico, do platonismo, não abandonasse o sentido primário de ser (eiÅnai), salvaguardado pelo trino sistema de segurança epistemológica (entidade, unidade e identidade)[1], tivemos que tomar por “acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces”[2]. Em suma, tivemos que ignorar e nos mantermos indiferentes a todos os pontos críticos que tornassem a questão do ser, ou, dito sem prurido, da vida, dificultosa e indefinível.
[1] Referência à Sofista, 241b; 241e; 242a-b; 245a; 254c-d (PLATONE. Opere complete. Roma-Bari: Laterza, 1999). Poderíamos também pensar na primeira ordenação de elementos já existem e eternos (e não criação ex nihilo) do Demiurgo, a alma cósmica, o princípio de vida, movimento e conhecimento. Reunindo os três elementos – o idêntico (tauton), o diverso (Qa/thron) e a essência (ou)si/a) – segundo proporções aritméticas e musicais, Demiurgo “criou” a Alma Cósmica. Nenhum elemento do caos material participa de sua constituição (somente princípios pertencentes às Idéias) (PLATON. Timeo o de la naturaleza. Obras completas. Madrid: Aguilar, 1974, p.366-367).
[2] “Revolver tal origem é tentar reencontrar ‘o que era imediatamente’, o ‘aquilo mesmo’ de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter ocorrido, todas as astúcias e todos os disfarces; é pretender tirar todas as máscaras, para desvelar, enfim, uma identidade primeira”. Tradução livre do original: “ (...) Rechercher une telle origine, c’est essayer de retrouver ‘ce qui était déjà’, le ‘cela même’ d’une image exactement adéquate à soi; c’est tenir pour adventices toutes les péripéties qui ont pu avoir lieu, toutes les ruses et tous les déguisements; c’est entreprende de lever tous les masques, pour dévoiler enfin une identité première” (FOUCAULT, Michel. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In:______. Dits et écrits. II. Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 138).
[1] FOUCAULT, Michel. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In:______. Dits et écrits. II. Paris: Éditions Gallimard, 1994, p.140.
[2] Idem, p.139.
[3] Idem, p.146.
[4] sens historique (Idem, ibidem)
[5] “En revanche, le sens historique échappera à la métaphysique pour devenir l’instrument privilegie de la généalogie (...)“. In: Id. p. 146-147, tradução nossa.
[6] Guardiãs dos portais dos domínios lingüísticos sem âmago e, ao mesmo tempo, símbolos destas jurisdições estrangeiras de si mesmas, as efígies sem feições não gozam de um secreto horto interior; seu segredo é “que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça desde de figuras que lhe eram estranhas” (grifo nosso). Tradução livre do original: “qu’elles sont sans essence, ou que leur essence fut construite pièce à pièce à partir de figures qui lui étaient étrangères” (FOUCAULT, Michel. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In:______. Dits et écrits. II. Paris: Éditions Gallimard, 1994, p.138).
[7] CLAIRVAUX, Bernardo di. Sancti Bernardi Opera, vol. III. Roma, 1957-1977, p.76. Alusão (aqui referendada em sentido figurado) à índole do último dos graus na hierarquia medieva (primeiro grau: autoconhecimento da verdade em nosso interior; segundo grau: verdade como amor; terceiro grau: verdadeira veracidade, verdade em si) instituída pela teologia bernardina, relativa à ascensão trial ao conhecimento da verdade.
[8] Gênese II, 19; 17-26. Português. In: BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1994, p.64-65.
[9] Crátilo, 385a; 385 e; 387 c-d; 390d; 319a; 428c (etc.) (PLATO. Cratylus. In: COOPER, J. M.; HUTCHINSON, D. S. Plato Complete Works. Indianápolis, Cambridge: Hackett Publishing Company, 1997). Menção à contraposição e à resposta platônica às hipóteses de Hermógenes (convencionalista) e Crátilo (naturalista) sobre linguagem (relato sígnico) e referência (correlato ontológico), especificamente sobre a origem da atribuição das palavras às coisas. Para Hermógenes, a linguagem é simplesmente uma questão de pactos convencionais; os nomes, frutos de acordos e convenções, são artesanalmente confeccionados. Já para Crátilo, a linguagem deve ser entendida no âmbito da imitação da ossatura da natureza das coisas pelas palavras; através das palavras impomos forma ao nome natural de cada coisa. Mesclando o problema da significância (questão do sentido) com o problema da verdade (questão da predicação), ambos distintos em Aristóteles, Platão responde apelando à coerência das formas: pela participação dos objetos na idéia que eles recebem o nome que possuem.
[10] Referência às “três modalidades platônicas de história” (FOUCAULT, Michel. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In:______. Dits et écrits. II. Paris: Éditions Gallimard, 1994, p.153 et seq).
[11] Banquete (PLATONE. Opere complete. Roma-Bari: Laterza, 1999). Menção à solução socrática ao problem[14] HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, p.530.545. Cf. HYPPOLITE, Jean. Genesis and Structure of Hegel’s Phenomenology of Spirit. Evanston: Northwestern University Press, 1974, p.156-177.a do Eros.
[12] Ανάγκη: mãe das moiras, simboliza a deusa grega da necessidade.
[13] SENECA. Ad Lucilium Epistulae morales. London: Harvard University
[14] HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, p.530.545. Cf. HYPPOLITE, Jean. Genesis and Structure of Hegel’s Phenomenology of Spirit. Evanston: Northwestern University Press, 1974, p.156-177.
[15] Menção à figura da consciência (Bewusstsein) no momento do estoicismo (Cf. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, p.136). No final da luta pelo reconhecimento, o ser-em-si da vida pura, diante do qual o escravo tremia, é dissolvido, aparecendo no lugar da coisidade o ser-para-si da consciência que se pensava escrava. O ser-em-si, o ser da vida pura, já não está desvinculado do ser-para-si da consciência; pelo medo da morte, disciplina pelo serviço e pelo trabalho, a consciência-de-si eleva-se à intuição de si mesma no ser. A consciência não mais quer negar o ser-em-si da vida, mas agora permite se reencontrar a si mesma neste ser, transformando o ser-em-si em pensamento (de consciência-de-si vivente converte-se em consciência-de-si pensante). Contudo, apesar de conquistar a liberdade pelo pensamento, essa liberdade ainda é abstrata, pois se “pensar” é realizar a unidade do ser-em-si no ser-para-si, esta ainda não se fez plena no momento do estoicismo. A unidade obtida ainda é abstrata porque o reencontro do si e do ser ainda é superficial, cada qual permanecendo ainda o que é em sua absolutez (o ser não é atravessado pelo eu consciente de si). É-se livre, só que no pensamento.
[16] Menção à figura da consciência no momento do ceticismo (Cf. Idem, p.137-138). No momento do ceticismo, retiram-se todas as possibilidades de um ser nas determinações da vida pura, mostrando-se o nada por trás das diferenças da vida. Radicaliza-se o triunfo da subjetividade que havia se alcançado no estoicismo. Só que este neste momento o ser-em-si não é destruído; de alguma forma, ele se matem em sua robustez. Já no ceticismo, as diferenças do ser passam a ser, então, todas consciência-de-si. O ceticismo é a superlativização do eu sobre a diversidade da existência, onde a consciência-de-si alcança a certeza absoluta de si mesma: “Mas de fato, porém, a consciência-de-si é a reflexão, a partir do ser do mundo sensível e percebido; é essencialmente o retorno a partir do ser-Outro. Como consciência-de-si é movimento; mas quando diferencia de si apenas a si mesma enquanto si mesma, então para ela a diferença é imediatamente suprassumida, com um ser-outro. A diferença não é; e a consciência-de-si é apenas a tautologia sem movimento do ‘Eu sou Eu’” (HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, p.136
[17] FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987, p.16.
[18] HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, p.53et seq (Cf. HYPPOLITE, Jean. Genesis and Structure of Hegel’s Phenomenology of Spirit. Evanston: Northwestern University Press, 1974, p.160 et seq.).
[19] Referência ao conhecido trecho 15a no início de Medéia (trad. David Kovacs. Cambridge. Harvard University Press, 1999). Ao realizar a valorização da operação apolínea de individuação dos personagens, Eurípedes dissolve o estatuto que os movimentos de evolução do coro gozavam na tragédia, asfixiando a sensação de desterritorialização e o desapego do eu típicos da plenitude dionisíaca.
[20] Conforme a sensação de impossibilidade absoluta do aforismo §243 de Aurora (Morgenröthe), cuja metáfora expressa o que doravente intitularemos perspectivismo da imanência: “Se tentarmos contemplar o espelho em si mesmo, acabamos por não descobrir senão as coisas que nele se refletem. Se quisermos, no revés, agarrar essas coisas, voltamos a ver somente o espelho (...)”. Tradução livre de: When we endeavour to examine the mirror in itself we discover in the end that we can detect nothing there but the things which it reflects. If we wish to grasp the things reflected we touch nothing in the end but the mirror (.,..)” (NIETZSCHE, F. The dawn of day. In:______. The complete works of Friedrich Nietzsche. New York: The Macmillan Company, 1911, p.240).
[21] Os jogos de linguagem entre os pronomes pessoais do caso reto, “ele” e “ela”, tentam evidenciar, neste caso, as metamorfoses da morte em abismo (e vice-versa). Se a morte é masculina e feminina ao mesmo tempo, evidente que não o é em tempo algum. A morte é um neutro, sem rosto; na expressão deleuziana, um corpo sem órgãos.
[22] LANDA, José Ángel García. El centro ausente. Atlantis, vol. XII, n.˚ 2, noviembre 1991, p.56.
[23] HANSEN, J.A. Prefácio. In: BECKETT, S. O Inominável. São Paulo: Ed. Globo, 2009, p.7-25. Simbolizando, assim, a ausência absoluta de uma certa espécie de noção de corpo, a morte ostenta, em seu lugar, um centro ausente[1], composto por uma multiplicidade de “vozes” anônimas e antinômicas, que se norteiam por orientações simultâneas e arbitrárias. Orientações persuasivas, que instauram a ilusão de que essas vozes criam campos plurais de sentido. O que não procederá em última instância, pois, como veremos, essas ausências estabelecem séries exaustivas, “afirmações e negações simultâneas, invalidadas à medida que se formulam”[2], capazes de eliminar, uma a uma, as significações e os mundos possíveis no mesmo instante em que os cria.[1] LANDA, José Ángel García. El centro ausente. Atlantis, vol. XII, n.˚ 2, noviembre 1991, p.56.[2] HANSEN, J.A. Prefácio. In: BECKETT, S. O Inominável. São Paulo: Ed. Globo, 2009, p.7-25
[24] Concerto para violino, cordas e contínuo Op.8 nº4 RV.297 em Fá menor – “Inverno”, 3º mov: Allegro.
[25] BECKETT, S. Three Novels: Molloy, Malone Dies, The Unnamable. New York: Grove Press, 1995, p.
[26] “A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por dissolver-se como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do inditoso” (BORGES, J.L. O Aleph. São Paulo: Ed. Globo, 1999, p.12).
[27] “As quatro estações” (Concerto para violino, cordas e contínuo Op.8 nº1 RV.269 em Mi Maior :“Primavera”; Op.8 nº2 RV.315 em Sol menor: “Verão”; Op.8 nº3 RV.293 em Fá Maior: “Outono”; Op.8 nº4 RV.297 em Fá menor: “Inverno”).
[28] “Pode-se dizer que Nietzsche se atira, com uma espécie de alegria terrível, ao impasse ao qual ele leva metodicamente o seu niilismo. Seu objetivo confesso é tornar insustentável a situação de seus contemporâneos. Para ele, a única esperança parece ser chegar ao extremo da contradição. Se o homem não quiser perecer nas dificuldades que o sufocam, será preciso que as desfaça de um só golpe, criando seus próprios valores. A morte de Deus não dá nada por terminado e só pode ser vivida com a condição de preparar uma ressurreição” (CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.93).
[28] Estas duas perguntas se repetirão várias vezes ao longo da investigação. A cada vez que se repetirem, acrescentar-lhes-emos mais limites e determinações, até alcançarmos uma “solução” adequada para nossa questão primitiva e para as questões marginais anexadas a ela.
[29] PIVA, Roberto. Ciclones. Vol. III. São Paulo: Ed. Globo, p.75.
[30] FOUCAULT, M. Theatrum Philosoficum. In: Dits et écrits. II. Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 75-99.
[31] ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço & Tempo, 1990, p.41.
[32] Doravante veremos que a linguagem, para Nietzsche, é a dimensão que pré-figura todas as outras.
[33] Conforme Deleuze, estes são os três espectros básicos do niilismo, a partir dos quais Nietzsche elabora e contrapõe o seu próprio niilismo (ativo) (DELEUZE, G. Nietzsche and philosophy. London, New York: Continuum, 2002, p.147-189).
[34] KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1996, p.358-359 (§ Seção segunda do capítulo terceiro. Do ideal transcendental (prototypon transcendentale)).
[35] Idem, p.358.
[36] FOUCAULT, Michel. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In:______. Dits et écrits. II. Paris: Éditions Gallimard, 1994, p.137. Trata-se da origem (Ursprung) que representa a finalidade e o motor dos regimes metafísicos, e que fora objeto principal da crítica genealógica em Nietzsche. Foucault contrapõe o perscrutar dessa origem a duas outras palavras que definem a genealogia nietzschiana como análise das proveniências (Herkünfte) e da delimitação da história das emergências (Entstehungen).
[37] Menção a significação filosófica que doravante será conferida ao momento em que o si-mesmo zaratustriano coincide exatamente consigo mesmo, através da reinterpretação do processo de incorporação (Einverleibung) e da ruptura de sua lógica interna, a duplicação extraperspectiva, que o impede de se tornar o único que é (através da efetivação da segunda hipótese do esgotamento do possível).
[38] Op. cit. p.138-139.
[39] MANSION, Suzanne. A primeira doutrina da substância: a substância segundo Aristóteles. In: ZINGANO, Marco (org.). Sobre a metafísica de Aristóteles. São Paulo: Odysseus Editora, 2005, p.73-92). Para um noção aporética e não unitária da doutrina da substância Cf. AUBENQUE, Pierre. El problema del ser en Aristóteles. Madrid: Taurus, 1987. Segundo Terence Irwin, Aubenque pensa a Metafísica como aporética porque se trata de uma investigação dialética (que não busca necessariamente a verdade), e não uma investigação ontológica (que busca uma verdade positiva) (Cf. IRWIN, Terence. O caráter aporético da Metafísica de Aristóteles. In: ZINGANO, Marco (org.). Sobre a metafísica de Aristóteles. São Paulo: Odysseus Editora, 2005, p341-343).
[40] Segundo Aristóteles, se perscrutarmos a estrutura geral da realidade em sua mais íntima conformação, encontraremos, por ventura, três tipos de coisas: a) os sujeitos (do gr. ὑποκείμενον, em lat. subjectum: o que é substancial, essencial, o que subjaz), b) as coisas que são ditas de um sujeito, e c) as coisas que estão em algum sujeito. Dentre estes entes, existem aqueles que d) “são ditos de algo” – como, por exemplo, nos termos de Aristóteles, homem é dito de este homem (particular), pois a estrutura íntima deste revela que ele pertence a espécie homem, ou seja, temos uma predicação substancial [kaq' au)to/] (onde existe a identidade entre o este homem e homem), que nos afirma o que é ser um homem – e “não estão em nada” – homem se diz de este homem, mas não está em este homem, pois este é um “isto” individual, com características únicas e intransferíveis. Seguindo o raciocínio, e) existem coisas que “não são ditas de nada” – o branco (uma propriedade comum), por exemplo, não é dito de este homem, pois, apesar de ser branco, essa propriedade não diz o que este homem essencialmente “é”, (temos, portanto, uma predicação acidental [kata£ sumbebhko/j], onde não existe a identidade entre branco e este homem) – e “estão em algo” – ou seja, o branco “está em” este homem (não como parte), pois este branco que “está em” algo só pode ser o que é se estiver vinculado à coisa individual este homem. Outras, por conseguinte, “são ditas de algo e estão em algo”. (ANGIONE, p.57). Enfim, para concluir as possibilidades de relação no interior da referida trilogia, temos coisas que “não são ditas de nada” – ou seja, a estrutura de este algo é absolutamente sui generis e única, não podendo, em função disto, ser dita daquele algo – e “não estão em nada” – pois este algo não “está em”, ele simplesmente “é” em si mesmo e por si mesmo e, portanto, basta-se a si mesmo (Cf. ANGIONE, Lucas. Ontologia e Predicação em Aristóteles. Categorias. Textos didáticos, n° 41, p. 56-64; Cf. SANMARTÍN, Miguel Candel. Tratados de Lógica (Órganon) I; Categorias, Tópicos, Sobre las Refutaciones Sofísticas. Madrid: Ed. Gredos, 1982, p. 29-42).
[41] Por razões óbvias, não reconstruiremos o caminho trilhado por Aristóteles desde Γ.1-3 até Ζ.1, momento de reconversão da questão do ser na da substância (τί τò ’όν à τίς ‛η ο’υσία) , bem como o significado dessa mudança do estado de coisas ocorrido no universo aristotélico.
[42] Op.cit, p.76.
[43] A hipótese da multiplicidade do ser fica clara na difícil tese da refutação às doutrinas eleáticas (Física I, capítulo III, 186a 22 a 186a 32-b3). Nesta passagem, Aristóteles quer demonstrar a insustentabilidade da idéia parmenídica de que o ser significa uma só coisa – tese fundamentada no pressuposto de que a dita “unidade de significado do ser” garantiria a “unidade do ser mesmo” (referência ontológica). Aristóteles toma, então, uma nova premissa – “aquilo que precisamente o ser é” não pode ser atribuído senão ao próprio “ser” (pois se tem que se manter a unicidade/ identidade entre ser e um) - para tentar manter, a princípio, a coerência interna da tese parmenídica. Diante dessa questão, Aristóteles pergunta-se: por que “aquilo que precisamente o ser é” significaria “ser”, ao invés de “não-ser”? Vejamos. Se nos basearmos nesta referida passagem, podemos propor as quatro premissas explicitadas por Aristóteles na seguinte ordem: (1) “aquilo que precisamente o ser é” é “branco”; (2) o “ser essencial para o branco” não é “aquilo que o ser precisamente é”. Parece-me que temos ser para o branco X ser para o sujeito de predicação: (a) “aquilo que precisamente o ser é” é idêntico ao “ser”; (b) o “ser essencial para o branco” é idêntico ao “branco”. Na concepção de Parmênides, a predicação (toda predicação) é uma afirmação de identidade: i) Do cotejamento entre (2) e (b), concluímos: que o “branco” não é “aquilo que precisamente o ser é” (3); ii) Do cotejamento entre (3) e (a), concluímos: se o “branco” não é “aquilo que precisamente o ser é”, pois, segundo a premissa (a), “aquilo que precisamente o ser é” é idêntico a “ser”, então, com efeito, obtemos que o “branco” não é “ser”, logo, o branco é “não-ser”, o que até pode ser um fato lógico, mas irreal para Aristóteles. Todavia, continuando a argumentação, se cotejarmos a nova premissa (4) obtida acima – de que o “branco” não é “ser”, logo, o “branco” é “não-ser” – com o item (1) – que diz “aquilo que precisamente o ser é” é “branco” – obtemos outra incoerência: a de que “aquilo que precisamente o ser é” não é “ser” (5). Para sairmos da incoerência obtida em (5), devemos, com efeito, negar validade a sentença (4) – que diz que “o branco não é ser, portanto, é não-ser” – e afirmar a validade original da sentença (1) – a de que “aquilo que precisamente o ser é” é “branco”. Entretanto, se assim procedermos, alerta-nos Aristóteles, a unicidade da tese parmenídica virá abaixo, pois, se admitirmos que o “branco” é “precisamente aquilo que o ser é”, temos “ser para o branco” e ser para “precisamente aquilo que o ser é”, ferindo o Um eleático e validando o Múltiplo aristotélico (Cf. BARNES, J. (ed.) The Complete Works of Aristotle. Princeton, 1984; Cf. ANGIONI, L. Aristóteles - Física III. Campinas: Ed. Unicamp, 2009).
[44] ARISTÓTELES. Metafísica de Aristóteles. Madrid: Ed. Gredos, 1998 (G.2, 1003a 3).
[45] Ser dito (gr. infinitivo de le/gesqai: dizer) corresponde, no presente contexto, a estrutura da coisa mesma, revelando o isomorfismo de estrutura que subjaz a gramática ontológica e a teoria da predicação.
[46] ARISTÓTELES. Metafísica de Aristóteles. Madrid: Ed. Gredos, 1998 (D, 1017a 7-1017b 1).
[47] ARISTÓTELES. Metafísica de Aristóteles. Madrid: Ed. Gredos, 1998 (D.8, 1017 b 13-14).
[48] “Este predicado deve estar reportado a este substrato (...), mas ele não pode exprimir uma nota essencial dele, ele representa somente uma determinação que lhe advém e que se colocará sob uma das categorias secundárias (qualidade, quantidade, etc)” (MANSION, Suzanne. A primeira doutrina da substância: a substância segundo Aristóteles. In: ZINGANO, Marco (org.). Sobre a metafísica de Aristóteles. São Paulo: Odysseus Editora, 2005, p.80).
[49] Idem, p.79. No entanto, essa teoria da predicação não designa a substância como um termo lógico; antes, ela corresponde a uma estrutura: a substância não é sujeito nem predicado, mas um realidade ontológica. “(...) ‘sujeito não atribuível a um outro sujeito’ é uma coisa que subsiste de maneira independente e que é substrato de tudo o que ‘se diz de outra coisa’”.
[50] “Isto manifesta a unidade da doutrina aristotélica da substância: é sempre a mesma realidade que o filósofo apreende sob o conceito de ou)si/a, mas ele tenta exprimi-la de maneiras diferentes, insistindo sucessivamente sobre aspectos que ela apresenta” (MANSION, Suzanne. A primeira doutrina da substância: a substância segundo Aristóteles. In: ZINGANO, Marco (org.). Sobre a metafísica de Aristóteles. São Paulo: Odysseus Editora, 2005, p.87). Muito embora afirmemos que cada aspecto compõe uma “parte” da noção de substância, isto é dito apenas figurativamente ou metodologicamente, já que cada traço da substância não é uma parte dela, mas pretende defini-la em sua totalidade.
[51] ARISTÓTELES. Metafísica de Aristóteles. Madrid: Ed. Gredos, 1998 (Z.III et seq).
[52] Op.cit (D.VIII, 1017b 23-25). Além de S. Mansion, outros autores, como Wilfrid Sellars e G. Owen, também se utilizaram de semelhante saída (Cf. IRWIN, T. Aristotle’s first principles. Oxford, 1988).
[53] MANSION, Suzanne. A primeira doutrina da substância: a substância segundo Aristóteles. In: ZINGANO, Marco (org.). Sobre a metafísica de Aristóteles. São Paulo: Odysseus Editora, 2005, p.83.
[54] Tradução livre do original:“(...) identité soigneusement repliée sur ellemême, as forme immobile et antérieure à tout ce qui est externe, accidentel et successif” (FOUCAULT, Michel. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In:______. Dits et écrits. II. Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 138).
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